Avenida João Fiusa, hoje a área nobre da cidade, com seus prédios e apartamentos de luxo, e os três palacetes no centro da cidade, onde as famílias abastadas residiam – Crédito: Esq. Equipe de reportagem. Dir. Amigos da Fotografia
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Assim como os apartamentos de luxo hoje, os casarões foram o lar de figuras políticas, fazendeiros e empresários importantes da época, como Jorge Lobato, Camilo de Mattos, e Domingos Innecchi. Mas, assim como o poder muda de mãos, o endereço também mudou.
Quem vê os prédios de alto padrão na avenida João Fiúsa ou mansões em condomínios de luxo de Ribeirão Preto, talvez não perceba que esse tipo de construção segue uma tendência do passado. Lá atrás, em 1920, a construção de três palacetes no centro da cidade chamava a atenção da sociedade pela beleza arquitetônica e demonstração de riqueza.
O desenvolvimento da cidade para outras regiões afastadas do centro, como a zona sul, fez essas construções, consideradas patrimônio cultural da cidade, serem esquecidas durante décadas. Uma delas, restaurada, voltou e está presente no convívio com a população. Outra resistiu à ação do tempo e está em processo de restauro. A terceira, porém, foi apagada da história definitivamente.
De acordo com o Lucas Gabriel Pereira, Presidente do Conselho de Preservação do Patrimônio Cultural (Conppac), a tríade de Palacetes, que pode ser traduzida em resistência, existência e inexistência, mostra como a cidade tratou a preservação do patrimônio histórico.
“O Palacete Innecchi, o 1922 e o Camilo de Mattos, tinham a mesma característica arquitetônica decorrente daquela profusão cultural e histórica, que impregnou em Ribeirão Preto decorrente do dinheiro da economia cafeeira. […] Os palacetes 1922 e Camilo de Mattos, tiveram a sorte de encontrar pessoas compromissadas em restaurá-los […] Nem todos tiveram a mesma sorte, como o caso do Innechi, que não encontrou alguém que pudesse recontinuar sua história.“
De acordo com a pesquisadora Ana Carolina Gleria Lima, autora da tese Casa e Documentação: A História Contada através de um Acervo de Projetos, defendida na USP de São Carlos, entre os anos 1922 e 1924 existiram 13 processos de solicitação para construção de tais edificações, que se concentravam principalmente no centro da cidade.
Palacete Jorge Lobato, na década de 1920 e hoje – Créditos: Foto antiga: Arquivo exposto no Palacete / Foto atual: Equipe de reportagem
Existência
O Palacete Jorge Lobato (1922) está preservado até os dias de hoje. Localizado na esquina das ruas Florêncio de Abreu com a Álvares Cabral, no Centro de Ribeirão Preto, se destaca por seu estilo art déco – caracterizado por formas geométricas, ornamentos de mármore, vidro e metal – com influências do barroco brasileiro na fachada e telhado.
O imóvel comprado em 2014 foi transformado em restaurante. Segundo Miriam Lopes, uma das sócias do atual Palacete 1922 , a oportunidade do negócio veio por meio de um anúncio.
“Quando compramos o Palacete não sabíamos qual seria sua destinação, mas o objetivo era ter uma atividade comercial que mantivesse o patrimônio preservado, sem necessitar do dinheiro dos impostos para mantê-lo. Então surgiu a ideia de fazer um restaurante e, através da gastronomia, contar um pouco da história de Ribeirão Preto, promovendo uma experiência gastronômica e cultural”
O restaurante busca misturar a história e a cultura da região. Os pratos, por exemplo, são nomeados em referência a figuras históricos, como o “Entre Rios” e “Diederichsen”, que fazem alusão ao antigo nome do município e a Antonio Diederichsen, personalidade importante do começo do século passado.
Os sabores são produzidos pela agricultura local, usando ingredientes nativos de cidades vizinhas, o mel produzido na própria cidade, e os peixes, pescados nos rios da região. Miriam Lopes ainda enfatiza como é importante o conhecimento e a manutenção histórica da cidade.
“Não é possível formar cidadãos sem que haja o conhecimento do passado da sua cidade. Sem patrimônio histórico, a cidade não tem passado e sem passado, a construção da cidadania e a percepção de pertencimento à cidade não se formam, principalmente nos mais jovens.”



História – A inovação arquitetônica dos palacetes
O edifício foi construído em 1922 e foi residência de Jorge Lobato Marcondes Machado, engenheiro, político e empresário, que se estabeleceu na região por volta de 1905. Projetado pelo escritório local Geribelo & Quevedo, dos engenheiros Afonso Geribelo e João Quevedo, o casarão segue o estilo art déco com influências do barroco brasileiro e do neocolonial, visíveis na fachada, telhado e na disposição dos espaços.
Inovador para a época, rompeu com o modelo tradicional de cômodos interligados, possuindo salas amplas e independentes, além de alas separadas para os empregados. Cercado por jardins, com vitrais franceses e piso de mármore, o imóvel reflete o estilo de vida das famílias mais abastadas da primeira metade do século 20.
Lobato faleceu em 1965 e, após sua morte, um dos filhos permaneceu morando sozinho no local até 1991. Posteriormente, o casarão ficou fechado por 24 anos, entrando em estado de abandono. Tombado em 2008 pelo Conppac como patrimônio cultural, foi adquirido em 2014 pelos irmãos Hector e Ingrid Sominami Lopes, que, ao entrarem no local, encontraram muita sujeira e cerca de 60 gatos, posteriormente resgatados com apoio da AVA (Associação Vida Animal). A partir de 2015, o palacete passou por um processo de restauração e atualmente funciona como um restaurante, preservando seu valor arquitetônico e histórico no centro de Ribeirão Preto.
Conheça a cozinha do Palacete 1922
O Palacete 1922, restaurado e inaugurado em 2017 como restaurante e espaço histórico e cultural de Ribeirão Preto, tem se tornado uma referência de alta gastronomia na cidade. O atual empreendimento une o sabor da cozinha contemporânea com a tradição do interior paulista.
À frente da cozinha está o chef Danilo Sakamoto, que traz no currículo passagens por restaurantes renomados em todo o Brasil. A gastronomia autoral e afetiva do chef traz pratos que misturam técnicas modernas e ingredientes regionais, como mamão, abóbora, laranja kinkan e geleia de pimenta. Ao visitar o restaurante, os clientes podem levar um pouco dos sabores para casa, como compotas e geleias disponíveis na loja dentro do empreendimento.
Uma curiosidade sobre o cardápio são alguns nomes de pratos, que contam a história de Ribeirão, como o Petit Paris, que se refere ao apelido com que a cidade era conhecida, devido à urbanização que trazia semelhanças com a capital francesa. Além disso, homenageia o próprio Jorge Lobato e Diederichsen.
Aos finais de semana, o destaque vai para o café da manhã, além de um almoço à la carte que atrai famílias e casais em busca de um programa mais tranquilo e refinado.
SERVIÇO:
Terça à sexta-feira: 11h30 às 15h
Sexta-feira e sábado: 19h30 às 23h30
Sábado e domingo: 11h30 às 15h
Localizado na Rua Álvares Cabral, 716, Centro de Ribeirão
Reservas e informações: (16) 99756.5495
Palacete Camillo de Mattos, no começo do século passado e atualmente, após a primeira etapa da reforma – Créditos: Esq. Acervo Amigos da Fotografia / Dir. Equipe de Reportagem
Resistência
O Palacete Camilo de Mattos resiste na esquina das ruas Duque de Caxias com a Tibiriçá, também no centro de Ribeirão Preto. Seu primeiro proprietário, Joaquim Camillo de Moraes Mattos, foi prefeito e vereador da cidade e construiu sua residência em uma posição estratégica, pois assim podia ir andando até o Palácio Rio Branco, então sede da prefeitura.
Joaquim Camillo de Moraes Mattos faleceu no dia 24 de agosto do ano de 1945, em Ribeirão Preto. Sua morte e sepultamento foram noticiados pelo jornal A Cidade, no dia 26 de agosto de 1945, em uma edição que está preservada no Acervo do Grupo EP.
Depois da morte de Luiz Augusto, filho de Camilo de Mattos, em 2003, o imóvel permaneceu abandonado, apesar de ter sido tombado como patrimônio cultural pela Prefeitura Municipal em 2008. A situação começou a mudar a partir de 2015, quando os empresários Marcos da Cunha Mattos e Ricardo Cesar Massaro compraram o imóvel.
“Nós fomos atrás de adquirir o Palacete e de buscar orientações e pesquisar como seria esse restauro [..] o imóvel é tombado e estava em um estado deplorável de conservação, o que exigia uma ação imediata para recuperá-lo”, aponta o engenheiro Massaro.
No começo da revitalização, o engenheiro e sua equipe formada por profissionais de engenharia e arquitetura se depararam com desafios que iam desde o estado de conservação do edifício até a identificação de pinturas parietais, muitas ainda desconhecidas. Todavia, com a ajuda de tecnologias especializadas, o processo vem sendo facilitado. Tainá Braulino, arquiteta responsável pela obra destaca:
“No primeiro momento, foi restaurado no térreo o hall de entrada nobre; no pavimento superior o dormitório um; as fachadas e toda área externa. Agora, a restauração foca na recuperação da primeira camada de tinta de todos os outros ambientes do palacete, com suas cores e faixas decorativas originais, restauração dos vitrais e todos os outros até a totalidade da restauração.”
Segundo a arquiteta, o intuito do restauro é manter a originalidade do imóvel, preservando suas características arquitetônicas.
“É importante frisar que o palacete está sendo restaurado e não reformado. Um processo de restauro requer muita atenção aos detalhes, principalmente no caso do palacete. Em uma reforma pode mudar tudo de lugar; no restauro o norte é sempre recuperar o prédio da sua integridade original”.
Em meio ao processo de restauro, o futuro do edifício já começa a ser desenhado. A proposta é que o espaço continue vivo mesmo durante as obras. “O Palacete continuará aberto durante as obras, com visitas monitoradas e sempre com o acompanhamento da obra em si, como nós optamos desde o começo”, explica Massaro.
Um dos diferenciais da iniciativa é justamente não ter fechado o espaço em nenhum momento. Diferente de outras restaurações, o patrimônio foi isolado por tapumes, permanecendo acessível ao público durante todo o processo. O próximo passo será a implantação de um projeto cultural conduzido pela arquiteta responsável, Tainá Braulino, que pretende transformar o restauro em um processo de educação continuada sobre preservação.
Para os próximos anos, Massaro vislumbra o Palacete como um marco cultural pulsando no coração de Ribeirão Preto. “Ele vai ser devolvido, do ponto de vista cultural, para a cidade”, diz, em tom de promessa. A ideia de um condomínio cultural, onde empresas ligadas à arte e à memória possam se instalar, dando ao edifício novas funções sem apagar as marcas que o tornaram um símbolo para Ribeirão Preto.



Parede da suíte principal guarda um cofre que era escondido atrás de um quadro – – Créditos: Equipe de reportagem/A Cidade – 120 anos
História – Um presente de aniversário à cidade
Estima-se que o Palacete Camilo de Mattos tenha começado a ser construído em 1921 e finalizado em 1927, porém, foi inaugurado, ainda sem terminar, no ano de 1922. É considerado um dos principais imóveis remanescentes do período do café.
A residência foi projetada por Antônio Soares Romeu e construída por Ernesto Terreri e Paschoal de Vincenzo. A planta segue o modelo tripartido, dividido em áreas sociais (escritório, hall, sala de visitas e de jantar), íntimas (quartos no pavimento superior) e de serviços (cozinha e despensa), além de uma pequena casa nos fundos do terreno para funcionários e garagem para automóveis, sendo um dos últimos exemplares desta tipologia.
Foi tombado como patrimônio histórico e cultural de Ribeirão em 2008 e comprado em 2016 pelos empresários Marcos da Cunha Mattos e Ricardo Cesar Massaro. Em 2019, foram enviados documentos de restauração ao Conppac e a primeira parte da obra de restauro foi entregue no dia 19 de junho de 2024, aniversário da cidade. Em meio ao processo e já contando com um projeto futuro, o Camilo de Mattos resistiu bravamente e se prepara para reexistir, trazendo um novo significado à sua presença na cidade.
Inexistência
O Palacete Innecchi não teve a mesma sorte. Foi demolido em 1972, deixou de existir e teve seu espaço ocupado pela construção de uma agência bancária que funciona no local até os dias de hoje. O presidente do Conppac, Lucas Gabriel Pereira, explica que, pelas leis atuais, o imóvel teria mais chances de ser preservado.
“Naquela época não havia sistema de proteção de patrimônio em Ribeirão Preto, que foi criado bem depois, muito depois. Se considerarmos que hoje em dia ainda não há uma consciência formada no âmbito do poder público – não estamos falando do poder particular, privado, estamos falando dos atores públicos, ainda não há uma consciência formada a respeito da preservação – quiçá aquela época” Presidente do Conppac, Lucas Gabriel Pereira
O edifício foi construído para servir de residência para a família do imigrante italiano Domingos Innecchi, que se estabeleceu em Ribeirão Preto ainda no século XIX e se tornou um grande empresário. No coração da cidade, na esquina das ruas Barão do Amazonas com Duque de Caxias, o Palacete foi construído com a intenção de ofuscar o prédio da Sociedade Recreativa, pois os sócios não permitiram que Innecchi se tornasse sócio do clube por ser italiano. Em 1932, a família de Innecchi fez do local, seu novo lar.
Projetado pelo mesmo arquiteto do Theatro Pedro II e de todo o Quarteirão Paulista de Ribeirão Preto, Hyppolito Gustavo Pujol Júnior, o Palacete Innechi tornou-se uma das construções ícones da história ribeirão-pretana e um símbolo do progresso do café. Entretanto, apesar de sua grandiosidade arquitetônica, o prédio veio a ser demolido após a morte do filho, Paschoal Innecchi, deixando seu espaço para a construção do atual Banco Itaú.
“Uma hora eles querem demolir para construir prédios, outra hora querem fazer estacionamento, outra hora querem fazer megas lojas, outra hora querem fazer bancos. O papel do patrimônio é esse, manter o patrimônio de pé, é manter as raízes de um povo vivo, manter a sua identidade latente. É mostrar a todos que você tem, nós temos, a cidade tem DNA, certidão de nascimento.”
Quem foi Domingos Innechi?
Domingos Innechi chegou ao Brasil em 1880, veio da Itália deixando sua esposa e seu filho para se estabilizar economicamente no país e posteriormente trazê-los.
Ao chegar no país, Domingos abriu uma funilaria e também fabricava alambiques para engenhos de cana de açúcar. Somente depois de 26 anos de sua chegada ao Brasil, conseguiu trazer sua família.
Em 1910 abriu a empresa “Domingos Innecchi & Filho”, na rua Amador Bueno, que fabricava móveis de madeira e camas de ferro, primeira indústria desse tipo em Ribeirão Preto. A empresa foi um sucesso e, com isso, Domingos e o filho Paschoal Innecchi criaram, cinco anos depois, uma fábrica de massas alimentícias.
Depois que Domingos Innecchi morreu, seu filho Paschoal continuou com os negócios da família.
Jogo interativo – Descubra o Palacete
Tombamento garante preservação?
Entretanto, mesmo com a grande importância histórica e cultural que tais edifícios portaram na cidade, e ainda que dois deles tivessem sido tombados como patrimônios culturais pelo Conppac, não houve garantia de sua preservação ou funcionalidade. Tais patrimônios, indispensáveis ao se contar a história de Ribeirão Preto, foram deixados por muitos anos ao acaso, em uma situação de abandono que não corresponde à magnitude inovadora para a época de 1920.
Foi somente em decorrência da iniciativa privada que o Palacete Jorge Lobato teve a chance de ser restaurado, ganhou nova função e pode abrir suas portas ao público. Ainda pela mesma iniciativa, o Camilo de Mattos segue resistindo à passagem do tempo, podendo viver seu processo de restauro enquanto aguarda o momento de retornar plenamente à utilização pública. Já o Palacete Innecchi, sem tombamento prévio, sucumbiu, destruído e apagado da memória ribeirão-pretana, cedendo seu lugar à uma construção da modernidade.
Entretanto, o tombamento de um edifício não garante que este seja preservado e restaurado, podendo muitas vezes ter um final mais lamentável que a destruição. Essa é a situação do Hotel Brasil, uma hospedagem inovadora e imponente de Ribeirão Preto na década de 1920, que se encontra em ruínas nos dias atuais. Mesmo sendo considerado um patrimônio histórico pelo Conppac, acumulou dívidas que impossibilitaram a restauração, tornando a sua existência apenas um devaneio do que ele já foi um dia.
É nesse contraste entre abandono e resistência que se revela uma verdade essencial: preservar a memória não depende apenas de leis ou documentos oficiais, mas de iniciativas constantes, capazes de manter vivos os espaços que guardam a história da cidade. Afinal, como resume Ricardo Massaro: “O grande desafio é eternizar para as futuras gerações; e que nunca mais se acabe.”
A Cidade – 120 Anos
O especial A Cidade – 120 Anos é um projeto multimídia do acidade on Ribeirão, em parceria com o curso de Jornalismo da Unaerp e o Acervo EP/ A Cidade.
Esta produção é dos alunos do curso de Jornalismo da Unaerp Ana Luiza Mattar Carrer, Luisa Casadio Medeiros, Daniela Moraes Bianchezi, Ana Clara Rodrigues Leal e Mariana Silva Lebre sob supervisão dos professores Gil Santiago, Guilherme Nali, Jefferson Barcellos, Elivanete Z. Barbi e Flávia Martelli.

