Conhecida atualmente como Capital do Chope e das Cervejas Artesanais, a relação de Ribeirão Preto com a bebida tem raízes mais antigas do que muitos imaginam. Ainda no final do século XIX, a chegada de imigrantes italianos e alemães na cidade marcou o início dessa tradição, antes mesmo da fundação de grandes fábricas do setor.
É o que explica o historiador José Antônio Corrêa Lages, que ao comentar sobre a relação dessas pessoas com o nascimento da cultura cervejeira na cidade afirma, “eles foram realmente os primeiros. Criaram essa tradição da pequena indústria de cerveja aqui na cidade, além da história e tradição. Existe nesse caso uma ancestralidade da produção cervejeira. Para se ter uma ideia, em 1911, Ribeirão Preto já contava com 29 pequenas cervejarias ativas, além daquelas já conhecidas e renomadas como a Cervejaria Antarctica Paulista e a Companhia Cervejaria Paulista”.

Entre os pioneiros, Lages cita nomes como o italiano Pedro Giachetto, considerado o primeiro cervejeiro da cidade com uma fábrica aberta em 1880, e o alemão Jacob Bwemmer. Entre as cervejarias, o historiador destaca, “a mais conhecida dessas primeiras iniciativas foi a Cervejaria Livi e Bertoldi, fundada em 1892 na região da avenida Capitão Salomão que, além da produção de cervejas, também eram preparados licores, xaropes, refrigerantes, entre outras bebidas”.
Das grandes fábricas ao Pinguim
No início do século XX, Ribeirão Preto recebeu grandes indústrias, como a Cervejaria Antarctica e a Companhia Cervejaria Paulista, que ajudaram a consolidar a cidade como um centro cervejeiro. Essa característica foi fortalecida em 1936, com a inauguração da Choperia Pinguim, que rapidamente se tornou um dos maiores símbolos da cultura do chope no Brasil.
Lages lembra que a trajetória também foi marcada pelas fundições de empresas do setor, reflexo do próprio sistema capitalista e da concentração de capitais.
“Aconteceram diversas fundições no setor cervejeiro. Primeiro entre a Paulista e a Antártica na década de 1970, depois entre a Antarctica e a Brahma em 1999, formando a Ambev. Nem mesmo as cervejarias artesanais escaparam desse processo. O principal exemplo é a própria Colorado, fundada em 1996 e adquirida pela Ambev em 2015”, afirma lages.
O historiador acrescenta ainda que a cultura cervejeira da cidade alimenta histórias que chegaram ao imaginário popular. “São referências tão ricas que dão lugar até mesmo para lendas urbanas, como o chopeduto, que supostamente levava a cerveja produzida da Antártica diretamente para o balcão do Pinguim. Mas essa história está ligada a uma cadeia produtiva que envolve turismo de negócios, hotelaria e gastronomia, sempre intrinsecamente ligada à cerveja e ao chope.”
Colorado e o uso de ingredientes brasileiros
Em 1996, foi fundada a Cervejaria Colorado, pioneira no uso de ingredientes tipicamente brasileiros, como café da Alta Mogiana, rapadura e mel. Essa inovação ajudou a consolidar a cidade como referência no cenário nacional de produção de cervejas artesanais.
Para Claudemir dos Santos, ex-funcionário da cervejaria que trabalhou desde sua fundação até março deste ano, “o crescimento da Colorado aconteceu graças aos amigos que fizemos, que sustentaram a cervejaria por muito tempo, até o Marcelo Carneiro, fundador, ter a ideia de inserir ingredientes brasileiros na cerveja e revolucionar o mercado cervejeiro no país a ponto de influenciar o nascimento de muitas outras cervejarias em Ribeirão Preto e em todo Brasil”.
Lages acredita ainda que esse movimento também dialoga com a chamada “imaginação do mercado”. Segundo ele, os sonhos e desejos dos consumidores foram moldados e explorados pelas empresas, criando valor, inovando produtos e impulsionando o consumo.
“A ideia de Marcelo Carneiro é um grande exemplo, criando uma cerveja com alto teor alcoólico, sabor amargo e acrescentando ingredientes como mel, maracujá e mandioca. Ele criou um novo tipo de degustação.”
Claudemir aponta que a Colorado criou uma nova filosofia de produção. “Precisávamos ser diferentes. A Colorado começou a produzir com foco na inovação e originalidade para despertar o interesse do paladar das pessoas. A cerveja Demoiselle, produzida com o adicional do café, foi um marco que chamou a atenção do mundo para a nossa cultura ao ganhar o European Beer Star na Europa.”

O boom das cervejas artesanais
Na década de 2010, uma nova geração de cervejarias e pubs especializados (cervejarias que produzem para venda direta ao consumidor no mesmo local da produção) expandiu ainda mais o cenário das artesanais em Ribeirão Preto. Marcas como Invicta, Lund, Walfänger, SP 330, Weird Barrel, Pratinha e Maltesa se destacaram. Em 2015, foi criado o Polo Cervejeiro, vinculado à Acirp (Associação Comercial e Industrial de Ribeirão Preto), para fortalecer a identidade local e impulsionar o turismo cervejeiro.
O professor de produção de cervejas artesanais, Ítalo Paulino, afirma que o diferencial da produção artesanal está na liberdade criativa.
“Na produção industrial há rigor em minimizar a variação de um lote para o outro. Já no lado artesanal, há uma maior possibilidade de explorar a criatividade do mestre cervejeiro no desenvolvimento das receitas e de proporcionar diferentes experiências sensoriais aos consumidores.”

Ele destaca que a tradição da cidade vai além da técnica.
“O que nos diferencia são as pessoas. Tanto o consumidor, apaixonado por ir em cada um dos inúmeros bares da cidade, quanto as equipes das próprias cervejarias. As pessoas e as suas paixões por esse estilo de vida são o que fazem a tradição de Ribeirão Preto no ramo cervejeiro ser única.”
O professor Paulino acredita que o turismo cervejeiro é fundamental para a economia da cidade. “Se devidamente explorado, tem capacidade de aumentar o número de empregos e elevar o PIB de Ribeirão Preto. Quem visita a cidade para o turismo cervejeiro acaba conhecendo muito além da cerveja.”
Microcervejarias e produção caseira
Além das cervejarias estabelecidas, Ribeirão Preto também abriga produtores caseiros que mantêm viva a tradição da experimentação. Marcos Brunelli, dono do bar Covil do Lobo, é um desses produtores. Ele explica as principais diferenças entre uma microcervejaria e uma grande fábrica.
“A principal distinção está na operacionalização. Na grande indústria há o predomínio da automação e replicabilidade absoluta. Já nas microcervejarias, o processo tende a ser mais manual e artesanal, o que pode introduzir maior variabilidade e singularidade aos lotes.”

CRÉDITO: Equipe de reportagem: Felipe Medeiros, Hugo Carcci, Luís Martins e Vinicius Pereira
Entre os principais desafios, o produtor destaca a competição com as grandes marcas.
“É preciso conscientizar o consumidor das vantagens de consumir de um pequeno produtor. Outra grande dificuldade é o aporte financeiro para equipamentos e infraestrutura. Sem isso, tudo se torna mais trabalhoso e o custo cresce.”
Brunelli ressalta o papel inovador dos pequenos produtores. “Eles são vitais para inovação e até mesmo resgate de estilos esquecidos que não têm apelo comercial. Hoje microcervejarias podem experimentar com mais liberdade, usar frutas e especiarias nativas do Brasil para criar cervejas únicas. Cervejeiros caseiros possuem ainda mais liberdade, porque não há preocupação com custos de produção.”
Por conta de toda essa criatividade, o produtor explica as mudanças de regulamentações durante o tempo.
“Qualquer cerveja que fosse produzida com derivado animal não poderia ser chamada de cerveja. Teria que ser rotulada como bebida mista. Lembrando que mel é um produto de origem animal. Uma das grandes influenciadoras para que essa classificação fosse alterada é a cerveja Appia, da Colorado.”
Reconhecimento oficial
Essa trajetória histórica, que começa com os imigrantes, passa pelas grandes fábricas e pelo Pinguim, além da revolução da Colorado, resultou em um reconhecimento oficial. Em 2024, a Assembleia Legislativa de São Paulo aprovou a Lei nº 18.006, que declarou Ribeirão Preto “Capital do Chope e das Cervejas Artesanais”.
O Anuário da Cerveja 2025, divulgado em agosto deste ano pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, reforça essa tradição. Atualmente, a cidade ocupa o oitavo lugar no ranking nacional de rótulos registrados, passando de 738 em 2023 para 755 em 2024, e conta hoje com 19 cervejarias, também ocupando a oitava colocação no levantamento.
Da ancestralidade imigrante à modernidade das artesanais, Ribeirão Preto construiu uma trajetória única que une tradição, criatividade e inovação. O título conquistado em 2024 coroou essa identidade centenária da cidade.
A Cidade – 120 anos
O especial A Cidade – 120 Anos é um projeto multimídia do acidade on Ribeirão, em parceria com o curso de Jornalismo da Unaerp e o Acervo EP/ A Cidade.
A produção foi realizada pelos alunos do curso de Jornalismo da Unaerp Felipe Medeiros, Hugo Carcci, Luís Martins e Vinicius Pereira sob supervisão dos professores Gil Santiago, Guilherme Nali, Jefferson Barcellos, Elivanete Z. Barbi , Flávia Martelli e apoio de captação e edição Denis Henrique e Lucas Melso.

