Home120 anosCirurgias que salvam vidas: HC Ribeirão Preto é pioneiro em transplantes de alta complexidade

Cirurgias que salvam vidas: HC Ribeirão Preto é pioneiro em transplantes de alta complexidade

Coceiras, ânsia de vômito e perda de peso. Esses eram os sintomas que teriam mudado para sempre a vida da autônoma Eloísa Santos, 30 anos, alagoana, e hoje moradora de Serrana. Um exame de rotina feito em uma unidade de saúde de São Paulo levou ao diagnóstico de cirrose no fígado. Naquela ocasião, em 2016, ela recebeu a notícia de que precisaria passar por um transplante. 

Eloísa Santos iniciou o tratamento na capital, mas em 2019, se mudou para Pontal, na região de Ribeirão Preto, para morar com sua tia Maria Ferreira. Ao procurar atendimento em um posto de saúde local, foi encaminhada para o Hospital das Clínicas. “Eu vim aleatoriamente. Cheguei em Pontal, entrei no postinho e eles me transferiram. O HC tomou [conta do caso], e começou tudo [o tratamento]”, diz. 

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No ano seguinte, devido às fortes coceiras, Eloísa entrou na lista especial de transplantes.  “Eu tive prioridade porque eu me coçava tanto que eu rasgava o corpo todo. Quando eu entrei na lista especial, foram três meses. Eu não sabia que ia ser tão rápido assim. Fiquei surpresa”, fala. 

A cirurgia aconteceu no dia 30 de dezembro de 2020. “Foi como se minha vida tivesse mudado da água pro vinho. A cor dos meus olhos era muito amarelada. [Depois do transplante] a minha pele seca mudou. Eu sou outra pessoa. Mudou minha vida em muitos sentidos, me tornei mãe. Foi maravilhoso”. 

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Eloísa Santos recebeu um transplante de fígado em 2020. Antes disso, sofria com coceiras intensas e outros sintomas
Crédito – Equipe de reportagem: Maby Ferreira; Matheus Carvalho; Nathan Costa; Yago Franzoni 

Esta história é uma entre as centenas de outras em que pessoas foram beneficiadas pelo pioneirismo do HC nas cirurgias de transplantes. O professor do Departamento de Cirurgia do HC da USP de Ribeirão Preto, Fábio Volpe, destaca a importância da instituição nessas cirurgias.

“O Hospital das Clínicas é pioneiro em várias áreas. Ele atua com excelência, com um grupo multiprofissional integrado de transplante de órgãos sólidos, uma vez que o paciente não é assistido ou tratado de forma setorial; ele é visto como um todo”.

Segundo o professor doutor da Divisão de Cirurgia Digestiva do HC, Ajith Kumar Sankarankutty, o HC fez 48 cirurgias de transplantes de fígado no ano passado. Em  2025, nos oito primeiros meses, já foram realizados 31 procedimentos, sendo dois deles de fígado e pâncreas juntos.

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Com esses números, somente nos primeiros três meses deste ano, o Hospital fez 16 transplantes de fígado, registrando um crescimento de 40% em relação a 2024. Nas cirurgias de rim, o aumento foi de 60%, em comparação ao mesmo período do ano passado. Dados do Ministério da Saúde  mostram que, em 2024, o Brasil efetuou mais de 30 mil transplantes, um crescimento equivalente a 18% em relação a 2022.

Por ano, o HC realiza cerca de 200 a 250 transplantes de órgãos sólidos, como fígado, rim e pâncreas. Já os procedimentos de córnea variam entre 300 a 400 cirurgias anuais. Além do transplante de fígado, o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto também é pioneiro em transplante de células-tronco, sendo o primeiro do mundo a realizar esse procedimento para tratamento de Diabetes tipo 1, medula óssea e em outros tipos. 

Primeiro transplante de fígado na região

O primeiro transplante de fígado feito na região foi sob responsabilidade do professor e cirurgião hepatologista, Orlando Castro e Silva Júnior.  Em maio de 2001, a cirurgia marcou a consolidação de dez anos de estudos e preparação. O paciente foi o representante comercial Edélcio Alves Pinto, de 48 anos, que esperava por um fígado devido a complicações de hepatite B.  

“O professor Orlando foi aprender o transplante [de fígado] em São Paulo. Lá havia um grupo que trabalhava e estudava doenças do fígado e a progressão desse estudo durou décadas. Quando me juntei [à equipe], fiquei em São Paulo para aprender a técnica. Fizemos o primeiro transplante em 1º de maio”, explica Kumar.

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O médico Ajith Kumar Sankarankutty participou da primeira cirurgia de transplante de fígado do HC de Ribeirão Preto
Crédito – Equipe de reportagem: Maby Ferreira; Matheus Carvalho; Nathan Costa; Yago Franzoni 

Ajith Kumar ainda destaca a importância de o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto ter sido pioneiro ao realizar este tipo de cirurgia na região. “O propósito é fazer cirurgias ou tratamentos mais complexos. Essa é a vocação do HC. Atuar em procedimentos complexos que são referência para a região e para o país. Nós temos que ensinar as pessoas. Treinar uma geração de alunos e residentes. Eles vão sair e levar isso para outros lugares.” 

“O HC mudou a vida de milhares de pessoas com as cirurgias e o transplante de fígado é uma delas. Ele transforma o hospital. Tem um efeito benéfico em cascata para todas as áreas”, afirma o professor, sobre as mudanças positivas que o Hospital trouxe para a qualidade de vida dos pacientes após serem transplantados.  

LINHA DO TEMPO COM SEIS TRANSPLANTES PIONEIROS DO HC

O começo de tudo: 1968

No Brasil, os estudos sobre transplantes de órgãos começaram por volta dos anos 1960. Em 1964, o país realizou o primeiro transplante renal, doado por uma criança de nove meses para um jovem de 18 anos, no Rio de Janeiro. Quatro anos mais tarde, em 1968, o Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto entrou para a história da medicina ao realizar o primeiro transplante de rim da América Latina com um potencial doador, ou seja, um paciente com morte cerebral.

A cirurgia ocorreu em fevereiro de 1968, no HC de Ribeirão Preto, sob o comando do urologista e cirurgião Áureo José Ciconelli. O procedimento também contou com as habilidades do médico Antônio Carlos Pereira Martins, responsável por convencer a família e fazer a retirada do órgão da doadora, e dos cirurgiões vasculares Cláudio Escobar e Osvaldo Castilho. Na ocasião, a doadora foi uma mulher de 28 anos, com morte encefálica.

O procedimento também foi marcado por uma grande tensão, já que a cirurgia não foi autorizada pelo então diretor da Faculdade de Medicina, mas sim pelo professor Paulo Gomes Romeo, ex-superintendente da Universidade de São Paulo (USP), que assumiu o risco. Ao todo, a cirurgia durou cerca de quatro horas. 

O transplante pioneiro realizado pela equipe médica de Ciconelli, serviu de molde para a distribuição de órgãos no interior. “Essa cirurgia contribuiu para a elaboração do modelo de distribuição de órgãos no interior do estado de São Paulo’’, relata o professor Carlos Molina, associado da Divisão de Urologia do Departamento de Cirurgia e Anatomia da Faculdade de Medicina da USP Ribeirão Preto. 

Na década de 1960, além das dificuldades técnicas e científicas de se realizar o transplante de fígado devido ao ineditismo, somam-se também os impedimentos legais, pois esses procedimentos ainda não eram totalmente regulamentados e não dispunham de códigos de ética bem formulados.

Conforme o médico coordenador da Organização de Procura de Órgãos (OPO), Marcelo Bonvento, as primeiras leis sobre transplantes no Brasil surgiram em 1989. Antes disso, o país viveu uma fase heroica, explica Bonvento. “Porque a gente fazia o transplante, mas não existia muita legislação em transplante. Não existiam muitas regras”.

HC se prepara para realizar transplante inédito de intestino pelo SUS

O Hospital das Clínicas de Ribeirão Preto iniciou a preparação para realizar o primeiro transplante de intestino da região. Com a aprovação da Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde)  e do Sistema Nacional de Transplantes (SNT), o HC aguarda apenas o credenciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), que deve ocorrer até o final do ano. A expectativa é de que a primeira cirurgia aconteça no primeiro semestre de 2026.

A ampliação desse tipo de procedimento coloca o HC como pioneiro no interior de São Paulo e um dos centros brasileiros capacitados a realizar esta cirurgia. Segundo Bonvento, médico coordenador da OPO (Organização de Procura de Órgãos), o transplante intestinal é um procedimento difícil e exige uma equipe técnica capacitada. “Precisa haver um grupo cirúrgico muito bom para você garantir a qualidade de vida [do paciente]”, explica.

“Não é uma aventura o que o Hospital das Clínicas está fazendo. Ele simplesmente está ampliando o atendimento e assistência baseado numa referência já comprovada em outros transplantes [de sucesso]”, afirma o médico Fábio Volpe, cirurgião do Grupo Integrado de Transplante de Órgãos do HC e responsável pela equipe de implantação do transplante pioneiro de intestino. 

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 Fábio Volpe explica sobre a ampliação dos transplantes do  HC de Ribeirão Preto.
Crédito – Equipe de reportagem: Maby Ferreira; Matheus Carvalho; Nathan Costa; Yago Franzoni 


Volpe reafirma ainda que o hospital tem a estrutura completa e necessária para realizar o transplante com sucesso. “Temos experiência na reabilitação intestinal, um grupo com experiência profissional em transplante de órgãos sólidos, uma estrutura hospitalar com equipamentos, insumos e medicação, além de um grupo de profissionais que já está fazendo essa capacitação técnica”.

Segundo ele, os médicos devem estar capacitados até o final de 2025. “Hoje nós somos um dos países que mais faz transplante de forma gratuita e pública. Incluir o intestino no rol dessa lista é algo que o país também merece.”

Segundo Marcelo Bonvento, aproximadamente 250 pessoas precisam, anualmente, de uma cirurgia de transplante intestinal no Brasil. Além disso, o médico explica que toda renda arrecadada pelo H.C. com esse tipo de procedimento será reinvestida no desenvolvimento de tecnologias e ambulatórios pós cirurgia.

O transplante de intestino é indicado para pacientes que sofreram um problema grave no intestino, como trombose, tumor ou doenças inflamatórias. De acordo com o médico Marcelo Bonvento, nesses casos, o hospital vai melhorar o atendimento clínico e recuperar o intestino dessas pessoas.

Para crianças que nascem com doenças inflamatórias intestinais e sensibilidade a glúten e lactose, o procedimento contribui para a reabilitação nutricional. “Vai beneficiar muito a população porque você vai parar de pagar leite especial e parar de pagar uma dieta. Será um grande passo para reabilitar os pacientes nutricionalmente”, explica. 

Apesar dos benefícios, o transplante de intestino ainda é um procedimento caro e esbarra na dificuldade do órgão em permanecer estável dentro do corpo. O pós operatório exige medicamentos e tecnologias específicas, além de anticorpos para assegurar que o paciente fique bem. 

Além do intestino, o HC também recebeu aprovação da Conitec e do SNT para realizar duas outras modalidades de transplantes: o multivisceral e o de membrana amniótica. O primeiro consiste em transplantar o intestino juntamente com outros órgãos abdominais, como pâncreas e fígado. 

O outro vai reaproveitar a membrana amniótica, que envolve o bebê durante a gestação, para transplantes em pacientes com queimaduras. Em casos mais complexos, essa membrana poderá ser usada também para refazer a parte branca do olho e substituir algumas membranas do cérebro humano. 

Outro benefício é viabilizar novos procedimentos de tratamento de pele. Atualmente, um curativo de pele utilizado no processo convencional pode custar 50 reais no SUS. Ao utilizar  a membrana amniótica, o curativo equivalente para o mesmo tratamento pode ser feito a um custo de 48 centavos, uma economia de 96%.

A ponte essencial entre a doação e o transplante de órgãos

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 Equipe de Enfermeiras da OPO – Camila Amaro Brandão e Pâmela Escarso; Médico Coordenador da OPO Marcelo Bonvento.
Crédito – Equipe de reportagem: Maby Ferreira; Matheus Carvalho; Nathan Costa; Yago Franzoni 

As Organizações de Procura de Órgãos (OPOs) cumprem um papel fundamental no processo de transplantes de órgãos no Brasil e são responsáveis pela identificação de potenciais doadores, acolhimento de famílias e a logística. A Organização coordena um processo extenso de atividades até o momento da transplantação de um paciente.

A atuação tem início quando a OPO recebe a notícia de que existe um possível doador no momento em que se inicia a avaliação clínica para verificar se há critérios de abertura do protocolo de morte encefálica.

Após a confirmação de morte cerebral, realizada por três médicos diferentes, os enfermeiros da OPO fazem o acolhimento familiar. “Cada entrevista é de um jeito porque cada família tem um pensamento. A gente tem que ter empatia e muito respeito nessa abordagem”, explica Alexandra Dias de Almeida, enfermeira coordenadora da OPO, de Ribeirão Preto. 

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Alexandra Dias de Almeida, enfermeira coordenadora da OPO explica a particularidade do acolhimento familiar 
Crédito – Equipe de reportagem: Maby Ferreira; Matheus Carvalho; Nathan Costa; Yago Franzoni 

Se a família aceitar a doação, o órgão é ofertado para a Central de Transplantes realizar os testes de compatibilidade entre potencial doador e receptores para encontrar um paciente compatível na lista de transplante. 

Mesmo que o doador tenha manifestado em vida o desejo de doar, a legislação brasileira exige o consentimento de um parente de primeiro grau. Caso aceitem, é assinado um termo de consentimento que especifica quais órgãos serão doados. 

A OPO tem até uma hora para enviar os exames do paciente para a Central de Transplantes e até oito horas para organizar a logística de transporte e agendar a cirurgia. Simultaneamente, a Central de Transplantes entra em contato com as equipes dos pacientes que estão no topo da lista. “Para cada órgão transplantado, a gente precisa de aproximadamente 80 pessoas [trabalhando]”, diz a enfermeira Alexandra.

O médico Marcelo Bonvento explica que o apoio da central é fundamental. “A primeira coisa é localizar onde está esse doador e o receptor e se a gente tem uma equipe pronta para fazer o transplante nessa localidade. Uma vez que isso é determinado, a gente estuda o hospital onde está o doador e aí a nossa logística.”

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Médico Coordenador da OPO, Marcelo Bonvento, comenta sobre a logística da organização 
Crédito – Equipe de reportagem: Maby Ferreira; Matheus Carvalho; Nathan Costa; Yago Franzoni


Enquanto ocorre o processo de captura, outra equipe médica já prepara o paciente que vai receber o órgão. Com a retirada, o órgão será transportado para o hospital onde está o receptor. 

Os transplantes no Brasil são fiscalizados pelo Sistema Nacional de Transplantes (SNT), que garante a transparência da lista e evita o conflito de interesses. No site CTC Transplantes, pacientes que estão esperando por um órgão conseguem consultar a sua posição na lista. O sistema também assegura que o médico responsável pelo diagnóstico não seja o mesmo que conversou com a família sobre a doação. 

A Cidade – 120 Anos

O especial A Cidade – 120 Anos é um projeto multimídia do acidade on Ribeirão, em parceria com o curso de Jornalismo da Unaerp e o Acervo EP/ A Cidade

Esta produção é dos alunos do curso de Jornalismo da Unaerp Maria Gabriely Ferreira Dias, Nathan Costa, Matheus A. O. De Carvalho e Yago Machado Franzoni sob supervisão dos professores Gil Santiago, Guilherme Nali, Jefferson Barcellos, Elivanete Z. Barbi e Flávia Martelli.







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