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Fotos que falam: quando o fotojornalismo se torna a memória de Ribeirão Preto

O jornal A Cidade, ao longo dos 120 anos de sua história, ajudou a registrar algumas das histórias mais emblemáticas de Ribeirão Preto. Por trás dessas imagens estão nomes como Weber Sian, Firmino Piton (também conhecido como F.L. Pinton), Joyce Cury, Renato Lopes e Matheus Urenha, fotógrafos que transformaram instantes em memória coletiva. Por meio de suas lentes, dores e celebrações se eternizaram em retratos do cotidiano. 

Nesta reportagem, cada um deles revisita um de seus cliques mais marcantes publicados no jornal e compartilha o que havia além da cena: da emoção do momento aos desafios enfrentados para capturar a imagem. Emoção é a palavra certa para definir o registro feito pela fotógrafa Joyce Cury em 24 de janeiro de 2009, no primeiro casamento homoafetivo que aconteceu em Ribeirão Preto. 

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A foto, publicada pelo A Cidade, foi além da cobertura jornalística: transformou-se em símbolo de representatividade e um novo capítulo na história da cidade. A cerimônia foi um divisor de águas na luta da comunidade LGBTQIA+ e a notícia foi publicada não apenas na edição do domingo, 25 de janeiro daquele ano, mas também na imprensa nacional.

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Pedro e Alex selam sua história em Ribeirão Preto, no primeiro casamento homoafetivo de Ribeirão Preto e região (Crédito: Joyce Cury)

Desde cedo, Joyce explorava a veia artística em diferentes formas de expressão. Pintava quadros, fazia teatro e sempre manteve viva essa dimensão criativa. No fotojornalismo, encontrou uma maneira de transmitir informações de forma direta. A jornalista explica que na foto, mais do que no texto, não há facilidade de manipulação.

Ao relembrar a imagem do casamento, ela reflete sobre o papel do fotojornalismo: nem sempre o profissional percebe, no instante do clique, que está registrando um pedaço da história. Para Joyce, cada foto carrega também o olhar único do fotógrafo, moldado por sua bagagem de vida. E, nesse caso, o registro ultrapassou a esfera documental. “Isso é um ato político também. Eu falar: gente, vamos cobrir esse casamento gay aqui. Dois homens que vão se casar, é um ato político”, afirma.

A carreira da fotojornalista começou através de Joel Silva,  repórter fotográfico, que a apresentou à profissão. Com apenas 23 anos, já era editora de fotografia no jornal A Cidade. Entre suas responsabilidades, esteve a seleção das imagens de Weber Sian que retrataram um caso de grande repercussão e resultaram no Prêmio Herzog, um dos mais importantes prêmios do jornalismo brasileiro, atribuído a Sian.

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Policial com a arma apontada para uma das moradoras da Favela da Família, na ação de reintegração de posse em julho de 2011 (Crédito: Weber Sian)


Essas imagens premiadas significaram para o fotógrafo Weber Sian o confronto com a dura realidade de quem viveu de perto uma ação de reintegração de posse em Ribeirão Preto. Suas imagens expuseram não apenas o conflito, mas a vulnerabilidade de famílias inteiras. 

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O que parecia ser apenas mais uma cobertura de reintegração de posse transformou-se em uma verdadeira cena de guerra. A manhã de 5 de julho de 2011 ficou marcada pelo encontro entre policiais e líderes da comunidade. Não houve acordo. O confronto começou e Sian estava no meio, registrando cada instante. “A polícia dando tiro de borracha, jogando bomba, os moradores jogando paus e pedras do outro lado e a gente no meio”.

A experiência o marcou profundamente. Ele relembra o impacto de ver a violência contra famílias inteiras sendo expulsas de suas casas. “Você via a sensibilidade dos moradores que já são pessoas fragilizadas e foram simplesmente expulsas como ratos do local, sem ter para onde ir”, afirma. No calor do conflito, sua única preocupação era registrar. As emoções só vieram depois, quando descarregou as imagens no jornal.

Para Sian, a essência da fotografia jornalística é ser informativa e factual: a imagem deve, por si só, contar o que está acontecendo. Muitas vezes, o olhar é prioridade e a técnica fica em segundo plano. “Às vezes não dá tempo de regular a câmera, você vai fazer a foto porque o que é importante aqui é o momento”, explica. A foto, segundo ele, precisa chamar a atenção e conduzir à leitura da reportagem.

Os registros da reintegração de posse na Favela da Família não renderam apenas o prêmio Vladimir Herzog, mas também uma viagem a Washington e Nova York, onde apresentou o trabalho na ONU. O reconhecimento foi emocionante: “Eu fiquei sem acreditar, fiquei muito emocionado de verdade, eu não esperava. As pessoas me viam na rua e falavam: olha o fotógrafo que ganhou o prêmio. Foi muito legal”.

Se nas lentes de Weber Sian a reintegração de posse expôs a violência policial e a revolta dos moradores, nas de Firmino Píton o cenário não foi menos tenso. Durante a perseguição a três suspeitos de roubo, ele acompanhou de perto o tiroteio e registrou o instante em que a polícia alcançou os homens e baleou um deles. O clique traduziu a tensão e o risco de estar na linha de frente da notícia.

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Matéria publicada no jornal A Cidade narra a perseguição policial nas ruas Ribeirão Preto.  A foto de Firmino Piton registro um dos detidos pela polícia após troca de tiros
(Crédito – Acervo EP: Jornal A Cidade)  

O perigo, porém, não parece intimidar Piton. Para o fotógrafo, é preciso manter o sangue frio, já que o medo pode comprometer o registro. Nenhuma cena escapa ao seu olhar: do cotidiano trivial aos momentos mais extremos, tudo pode se transformar em fotografia. “Fotografo tudo, o legal, o ilegal, moral e imoral. E aí depois a gente vê o que faz com aquilo…”, resume.

Piton afirma que sempre fez sua parte ao registrar os fatos, mas conta que, em muitas situações, sofreu pressão de todos os lados, era questionado se estava junto da polícia ou dos suspeitos. A resposta, para ele, sempre foi clara. “Estou do lado da lei, o que a lei fala que tem que ser feito. Então eu tô sempre assim, dentro da lei, respeitando.”

Na fotografia, encontrou também uma forma de se comunicar. Fotógrafo desde 1988, iniciou a carreira por influência do pai. Ao relembrar sua trajetória, destaca como as experiências anteriores em outras profissões moldaram seu olhar. Cada ângulo, cada enquadramento e cada técnica carregam uma vida inteira de vivências, que ajudaram a formar o fotojornalista que é hoje. Mais do que registrar, Piton acredita que seu trabalho deve provocar uma reflexão social, despertando no público um olhar crítico sobre a realidade.

Essa mesma dimensão aparece no trabalho de Renato Lopes, que esteve diante de uma das cenas mais marcantes e dolorosas de Ribeirão Preto: o caso do menino Joaquim. Primeiro fotógrafo a chegar ao local, foi ele quem registrou o momento em que o corpo da criança era retirado da água. Nas margens do córrego, já no caixão, a cena registrada chocou e comoveu toda a cidade. 

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Capa do jornal A Cidade, com registro de Renato Lopes. No registro, o caixão com o corpo do menino, após retirada do Rio Pardo, em Barretos 
(Crédito: Acervo EP: Jornal A Cidade)


Apesar do impacto, Lopes lembra que sentiu um certo alívio, pois sabia que aquilo traria um desfecho para o pai de Joaquim, que até então não tinha certeza do que havia acontecido com o filho. “Quando chegou a notícia, no fundo eu já sentia que era do Joaquim, então achei até mais um alívio porque, pelo menos, a coisa ia ser esclarecida. A família, no caso o pai, ia ter um desfecho”, afirma. O maior choque, segundo ele, foi a frieza da mãe diante de toda a situação.

Diante de um momento tão delicado, o fotógrafo explica que os anos de experiência em outros jornais o “calejaram” e o ajudaram a se manter calmo para registrar a cena. “Eu vou sentir depois, mas na hora eu consigo me manter ali, fazer o que eu tenho que fazer”, explica. 

Sobre a técnica, reconhece sua importância, mas reforça que o olhar é ainda mais essencial. Compartilha, inclusive,  um ensinamento que recebeu de um professor no início da carreira. “Na fotografia é 20% teoria e técnica e 80% feeling, o olhar”. Para ele, cada caso registrado deixa marcas, porque suas fotos não apenas mostram os fatos, mas permitem que as pessoas sintam o impacto de cada história. Lopes acredita que o papel do fotojornalismo não é apenas informar, mas também sensibilizar e provocar reflexão.

Assim como Renato Lopes, que valoriza o olhar e a sensibilidade, Matheus Urenha também acredita que a essência da fotografia está na relação criada com a cena. Essa percepção ficou clara em um de seus registros mais marcantes: a história de dois meninos que, durante um tratamento no HC, encontraram na amizade uma forma de enfrentarem juntos a rotina hospitalar. Para ele, naquele momento, a conexão humana falou mais alto que qualquer recurso técnico, embora ambos fossem necessários para eternizar o instante.

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Na fila por um transplante, Guilherme e Flávio encontraram na amizade a força para enfrentar juntos os dias de espera  (Crédito: Matheus Urenha)


Matheus destaca que gosta quando a fotografia traz um olhar humanizado às matérias, indo além dos “personagens” e da cena, para revelar a experiência e a vivência de cada pessoa. Fotografar Guilherme e Flávio, junto às suas famílias, foi um divisor de águas em sua forma de trabalhar. O uso das sombras para evidenciar as expressões dos garotos e a cumplicidade entre eles deram à imagem uma carga de confiança e afeto. “Essa relação sugerida na imagem existe: existe confiança, existe cumplicidade, mesmo que ali, desfocado”, explica.

Para além da técnica e do olhar, o fotógrafo ressalta a importância do cuidado redobrado ao lidar com crianças. Cada registro deve ser feito com respeito, sem espaço para interpretações equivocadas. “Essa foto só foi feita e publicada porque não compromete de forma alguma as crianças”, afirma.

Ao refletir sobre sua trajetória, Matheus Urenha reconhece os desafios da profissão, seja no domínio técnico, seja no contato direto com as pessoas, mas enxerga no fotojornalismo uma experiência enriquecedora. Cada imagem registrada, segundo ele, é mais do que uma foto bonita: é a tentativa de compartilhar sua visão particular sobre momentos que marcaram vidas. 

O fotojornalismo vai muito além do clique. É memória, denúncia, arte e, muitas vezes, resistência. Cada registro carrega não só o fato em si, mas também o olhar e a vivência de quem está por trás da câmera. Pelos olhos desses fotógrafos, Ribeirão Preto teve registradas suas dores e alegrias, e uma memória coletiva construída. O Jornal A Cidade, que está completando 120 anos, publicou as imagens e as perpetuou na história de Ribeirão Preto.


A Cidade – 120 anos

O especial A Cidade – 120 Anos é um projeto multimídia do acidade on Ribeirão, em parceria com o curso de Jornalismo da Unaerp e o Acervo EP/ A Cidade.


A produção foi realizada pelos alunos do curso de Jornalismo da Unaerp Isabela Dib, Larissa Rodrigues, Maria Julia Capile, Thays Silva e Yasmin Prado  sob supervisão dos professores Gil Santiago, Guilherme Nali, Jefferson Barcellos, Elivanete Z. Barbi , Flávia Martelli e apoio de captação e edição Denis Henrique e Lucas Melso.

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