O culto aos mortos é um comportamento milenar, mas se engana quem pensa que os cemitérios guardam apenas dor e lembranças. No Cemitério da Saudade, em Ribeirão Preto, além de memórias familiares, é possível encontrar beleza, história e arte.
Ao percorrer as alamedas, a cada curva surgem esculturas que revelam o talento de artistas imigrantes italianos. E não é exagero, pois muitos dos mausoléus, túmulos e lápides foram feitos por artesãos que trouxeram consigo técnicas de esculpir o mármore e as imprimiram na memória da cidade.
Anjos, santos e pranteadoras – esculturas de mulheres chorando – fazem do espaço uma galeria a céu aberto. Hoje, essas obras resistem ao tempo e também dialogam com a memória coletiva da cidade.
Inaugurado em 30 de setembro de 1893, no bairro Campos Elíseos, o Cemitério da Saudade surgiu na época em que a cafeicultura impulsionava o crescimento local. E, durante décadas, foi o único na cidade até a abertura do Cemitério Bom Pastor, em 1974. Com 132 anos de existência, o local abriga jazigos de figuras centrais da história municipal, como os ex-prefeitos Camilo de Mattos e Costábile Romano, a filantropa Sinhá Junqueira, além de outras famílias tradicionais que marcaram o desenvolvimento econômico e social da região.




O espaço é composto por 110 mil metros quadrados, com 7.604 jazigos, 2.622 gavetas ossuárias e são quase 140 mil sepultamentos registrados até outubro de 2024, segundo dados da Prefeitura Municipal. Mais do que números, o Cemitério da Saudade consolidou-se como patrimônio histórico e cultural.
Um dos grandes trunfos do local é a arte tumular herdada daqueles artesãos imigrantes. Entre anjos em oração, bustos de coronéis do café, brasões e pranteadoras de mármore, cada obra carrega o talento de artistas que chegaram da região de Carrara, na Itália, famosa pela extração do mármore.
Um deles, Carlo Barberi fundou a Marmoraria Ítalo-Brazileira que desempenhou um papel importante no desenvolvimento de Ribeirão Preto. A empresa, inaugurada em 1892, foi uma das primeiras do ramo de mármores e granitos na região. Originalmente situada no local onde hoje está a Biblioteca Sinhá Junqueira, a marmoraria teve grande importância para a cidade, atendendo famílias influentes da época.

Créditos: Imagem publicada no livro ARTE FUNERÁRIA NO BRASIL (1890 – 1930) da pesquisadora Maria Elizia Borges
Segundo a professora e pesquisadora Maria Elizia Borges, a produção arquitetônica em mármore era um trabalho que exigia conhecimento artístico e técnico.
“A maioria das marmorarias de Ribeirão Preto tinha seus artesãos formados na Europa, que dividiam com arquitetos sem diploma o encargo de projetar e executar boa parte das construções da cidade e para parentes próximos, no caso seus filhos, por conta da falta de mão de obra especializada”, afirma Maria Elizia em sua obra “Os artistas-artesãos e escultura cemiterial de Ribeirão Preto”.
Outra função dessa prática marmorista foi o emprego de crianças oriundas das colônias italianas, que recebiam aprendizagem profissional e alfabetização, alcançando um novo ofício.
Durante a Primeira República, entre 1889 e 1930, a crescente classe média urbana, ao desprezar os produtos nacionais, impulsionou o consumo de produtos importados, como o mármore de Carrara que foi amplamente utilizado nas fachadas das casas, nas escadarias, lavatórios e pias. Além disso, ele também foi empregado em túmulos e jazigos de estilo capela. Ainda nesta época, a arte tumular englobou uma diversidade de estilos como o neoclássico, eclético, romântico e realista, culminando com as obras modernistas.
Muitos cemitérios adotavam características próprias para refletir os valores da burguesia da época. As construções combinavam valor artístico e simbólico para perpetuar a memória do falecido como uma figura social. Coube aos artistas-artesãos realizarem construções dotadas de signos próprios que reproduziam fielmente os valores morais, religiosos e econômicos daquela sociedade burguesa.
Famílias como os Coppedê fundaram marmorarias que executavam obras que se tornaram referência, atendendo os valores da sociedade. Esses monumentos iam muito além da função funerária, eram símbolos de status social de uma elite social.
“A princípio, começaram a trabalhar só com túmulos. A demanda foi muito grande e aí começaram a crescer também na parte de construção civil. Ainda hoje, há muitos prédios antigos no centro de Ribeirão, que usaram muito mármore externo e interno, feitos por eles”, conta Arnaldo Coppedê, descendente de marmoristas.

Créditos: Imagem publicada no livro ARTE FUNERÁRIA NO BRASIL (1890 – 1930) da pesquisadora Maria Elizia Borges
Com o passar do tempo, essa tradição entrou em declínio. As dificuldades de importação do mármore, a substituição por materiais como granito e bronze e a perda de mão de obra especializada resultaram em túmulos mais simples e padronizados, sem o refinamento artístico que marcou os primeiros anos do Cemitério da Saudade. Porém, as esculturas resistem e transformam o espaço em uma verdadeira galeria a céu aberto, que também podem ser visualizadas nas fotos produzidas pelo fotógrafo Cesar Mulati, para o livro Arte Funerária no Brasil (1890-1930).

Crédito: Cesar Mulati, fotográfo. Imagem publicada no livro ARTE FUNERÁRIA NO BRASIL (1890 – 1930) da pesquisadora Maria Elizia Borges
Um Ribeirão de Saudade
Atualmente, o cemitério também se reinventa como espaço cultural. Em outubro de 2023, o historiador Felipe de Souza e a produtora cultural Juliana Bezerra Petruccelli criaram o tour Um Ribeirão de Saudade, um passeio que percorre 20 pontos históricos dentro do cemitério. Com apoio da Secretaria Municipal da Cultura, a iniciativa busca mudar a percepção do público.
“Nós podemos chamá-lo de museu a céu aberto porque ele tem um vasto acervo de esculturas, túmulos com arquiteturas importantes para a nossa história, personalidades importantes para a história de Ribeirão Preto sepultadas ali”, explica Felipe.

Crédito: Equipe de reportagem: Ana Helena Mendes, Gabriela Lacerda, Rafaella Carvalho e Vitória Tasqueti
Durante a caminhada, os visitantes conhecem desde o monumental túmulo da família Alves Ferreira, obra de Carlo Barberi, até narrativas como a da “Rainha do Café”, Iria Junqueira, e a devoção ao Menino Zezinho considerado milagreiro. Nos relatos, o impacto é evidente, muitos dizem passar a reconhecer o lugar como uma história viva da cidade. Os cemitérios, enquanto patrimônio cultural, possuem significados que envolvem tanto os aspectos materiais quanto os imateriais.
EXPLORE O CEMITÉRIO
Embora os cemitérios europeus já se apresentem como referências no turismo, os cemitérios brasileiros passam a integrar, de forma gradual, os roteiros turísticos em algumas cidades. Exemplos como São Paulo e Rio de Janeiro demonstram esse avanço, ao incluir programas específicos que oferecem visitas guiadas a cemitérios considerados parte do patrimônio local. Os principais atrativos coincidem com os dos cemitérios já reconhecidos internacionalmente: obras de arte, sepulturas de figuras históricas e a presença de um ambiente calmo em contraste com o ritmo acelerado da cidade.
Sob essa nova perspectiva, os cemitérios tornaram-se uma instituição cultural em cidades de todo o mundo. A preservação do seu patrimônio é uma das formas de legitimá-los, assim como as atividades artísticas e culturais ali realizadas.
Cemitérios que são referências culturais e turísticas
O fascínio dos cemitérios: patrimônios históricos e artísticos que atraem visitantes
A visita a cemitérios pode parecer estranha, mas é certo que em vários países eles são pontos turísticos. Mais do que memória, esses locais de sepultamento transformam-se em espaços de arte, história e contemplação, onde o passado encontra o presente em formas eternizadas. Indo além de sua função original, como importantes pontos turísticos são reconhecidos por sua relevância histórica, artística e cultural. Os visitantes que comparecem estão interessados não apenas nas memórias que ali repousam, mas também na arquitetura, na arte funerária e nas histórias singulares que carregam.
Um dos exemplos mais emblemáticos é o Cemitério Père-Lachaise, em Paris, na França, conhecido como um dos mais visitados do mundo. Inaugurado em 1805, possui cerca de 70 mil túmulos, muitos deles com rica ornamentação. Nesse espaço, estão sepultadas figuras notáveis da literatura, da dança, da música e da política. Entre os nomes mais conhecidos, além dos já citados, encontram-se também, Jean-Baptiste Poquelin (Molière), Honoré de Balzac, Oscar Wilde, Marcel Proust, Isadora Duncan, Frédéric Chopin e Jim Morrison.
Do lado de cá do Atlântico, na Argentina destaca-se o Cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. Este cemitério funciona como um museu a céu aberto, devido à riqueza artística de suas construções neoclássicas e art déco, que decoram os túmulos e mausoléus de ex-presidentes, artistas renomados e figuras históricas marcantes do país, como Eva Perón, a Evita, personagem quase mítica da história política portenha. O local representa um importante espaço de memória coletiva, onde a história política e social argentina se entrelaça com as vidas de seus habitantes.
Também na América do Sul, o Cemitério Museu de San Pedro de Medellín, na Colômbia fundado em 1842, criou nos anos 2000 o projeto “O Cemitério como lugar pedagógico” e implantou várias ações que visam a despojar a morte de seu caráter violento e trágico. Trata-se de tentar esquecer uma realidade vivida pelos colombianos durante um período histórico com muitas mortes provenientes do narcotráfico e que, ao mesmo tempo, procura associar o espaço do cemitério com a arte e a história. A proposta visa trazer a comunidade do entorno para dentro do cemitério, convertendo o local em um centro de aprendizagem e vivência para crianças, jovens, adultos e idosos.
Além desses, outros cemitérios ao redor do mundo, como o Cemitério Central de Viena, na Áustria, e o Highgate Cemetery, em Londres, também se destacam por sua combinação única de arte, história e natureza, oferecendo uma experiência contemplativa e educativa para os visitantes.
A Cidade – 120 Anos
O especial A Cidade – 120 Anos é um projeto multimídia do acidade on Ribeirão, em parceria com o curso de Jornalismo da Unaerp e o Acervo EP/ A Cidade.
Esta produção é dos alunos do curso de Jornalismo da Unaerp Ana Helena Mendes, Gabriela Lacerda, Rafaella Carvalho e Vitória Tasqueti sob supervisão dos professores Gil Santiago, Guilherme Nali, Jefferson Barcellos, Elivanete Z. Barbi e Flávia Martelli.

