Home120 anosO embrião do Novo Cangaço: quase dez anos depois de ataques em Ribeirão Preto, quadrilhas focam em cidades menores

O embrião do Novo Cangaço: quase dez anos depois de ataques em Ribeirão Preto, quadrilhas focam em cidades menores

Ribeirão Preto. 5 de julho de 2016. O relógio ainda marcava a madrugada quando o bairro Campos Elíseos foi acordado pelo barulho de tiros e explosões. Um comboio com 15 carros e um caminhão avançou pelas ruas, espalhando pregos pelo asfalto e derrubando um transformador, deixando cerca de 2,2 mil imóveis sem energia. O céu era iluminado por rajadas de fuzis 556, 762 e calibre .50, armas capazes de derrubar até um avião.

Os criminosos cercaram a sede da Prosegur e, após três explosões internas, abriram o cofre. Malas carregadas com R$ 51 milhões foram retiradas. No momento do ataque, apenas um vigilante estava no prédio. Durante a fuga, um policial rodoviário foi morto com um tiro na cabeça e um morador de rua morreu após ser usado como “escudo”.

- Publicidade -

Enquanto a cidade assimilava o ocorrido, as investigações começaram a revelar detalhes da organização do crime. Entre os quatro assaltantes presos, dois eram ex-vigilantes da Protege. Ângelo Aparecido Domingues dos Santos e Juliano Moisés Israel Lopes foram encontrados em um resort em Rio Quente-GO com R$160 mil.

Outro detido, Diego de Moura Capistrano transportava dinheiro e comparsas em um caminhão, e um ex-funcionário da própria Prosegur, Sérgio Zemantauskas Daniel, repassava informações estratégicas à quadrilha. O dinheiro recuperado foi R$ 200 mil, e os criminosos foram julgados e condenados a penas que chegam a mais de 70 anos de prisão.

Dois anos depois

Ribeirão Preto. 29 de outubro de 2018. A madrugada na zona leste da cidade foi quebrada por explosões e tiros que ecoaram pelo bairro Lagoinha. Um grupo de criminosos fortemente armado atacou a empresa Brinks, destruindo parte do muro e os carros-fortes estacionados no pátio. O som das explosões, cerca de nove no total, assustou os moradores e chamou atenção da população.

Os assaltantes renderam reféns, o frentista, Wellington da Silva e um funcionário de uma garagem, ambos não se feriram. Segundo o frentista, eles chegaram em diversos carros e espalharam pregos pelo caminho, enquanto incendiavam veículos em ruas próximas como a Rua Niterói, na marginal da Avenida Castelo Branco e no cruzamento com a Avenida Presidente Kennedy para atrasar a chegada da polícia. Durante a fuga, se dividiram em grupos, deixando cinco carros abandonados com explosivos em um canavial entre Serrana e Serra Azul. O Grupo de Ações Táticas Especiais (GATE) precisou ser acionado para desativar o material explosivo.

A Polícia Militar apreendeu armas pesadas na casa de um criminoso preso, incluindo um AK-47 de fabricação romena, um Colt M4 norte-americano, uma metralhadora ponto 50, fuzis calibre 9mm, capacetes balísticos, miguelitos e toucas ninjas. Parte do armamento de uso restrito das Forças Armadas, enterrado em Hortolândia, também foi confirmado como utilizado no ataque. Estima-se que a quadrilha tenha investido cerca de R$1 milhão na ação.

- Publicidade -

O confronto com a polícia fez com que um dos criminosos, identificado como Fábio Donner Silva Martins, fosse morto no tiroteio. Três outros suspeitos foram presos, um deles ferido, em Serra Azul, mas o trio acabou liberado por falta de provas. 


No dia seguinte, o recém-nomeado governador de São Paulo, João Dória, afirmou que Ribeirão Preto seria prioridade e anunciou a implementação do BAEP, com 300 policiais de elite, reforçando a segurança na cidade.

Assaltantes dividem a equipe em células especializadas

Joao Osinski 1 2025 10 16 13 46 46
João Osinski Júnior, delegado aposentado, explica a atuação das quadrilhas em células
Crédito: Acervo EP/EPTV

O mega assalto à empresa Prosegur, em 5 de julho de 2016 foi o primeiro registrado na cidade, o que exigiu uma investigação aprofundada da polícia e da inteligência. Esse trabalho contribuiu para a descoberta de informações sobre as organizações criminosas e suas formas de atuação. João Osinski Júnior, delegado aposentado e, na época, diretor do Deinter-3, explica que grupos de criminosos que atuam nessa modalidade de assalto costumam ser divididos em pequenas células, cada qual com uma função específica.

Existe um mentor, que é aquele que planeja o roubo, que faz todo o cronograma de como ele deve acontecer e depois vai distribuindo as tarefas em pequenas células”, explica Osinski. A primeira célula é encarregada de providenciar os veículos, geralmente blindados. Esses veículos são furtados até com um ano de antecedência e recebem placas clonadas ou documentos falsos.

A segunda célula especializa-se em conseguir armas. Já a terceira célula é recrutada para comparecer ao local onde será realizado o roubo e atirar a esmo, sem alvo específico, com objetivo de intimidar a polícia e gerar pânico na população. A quarta célula providencia os explosivos. “Geralmente são pessoas que já trabalharam em pedreiras, que possuem um conhecimento em explosivos, de como explodir”, explica o ex-delegado. Essa equipe também efetua o roubo dentro dos cofres. A última célula organiza a fuga do grupo.

“Importante a gente dizer que eles estruturaram isso como verdadeiras organizações terroristas, porque se constituíram em células e não se conhecem entre si. Então, mesmo que você prenda uma determinada parte da organização, não consegue esclarecer o restante, porque elas não se comunicam entre si.”



Essa divisão em células explica a qualidade e a potência do arsenal utilizado pelos bandidos. O armamento utilizado pelos criminosos em assaltos a empresas de transporte de valores e outras ações de grande porte é de uso restrito, destinado apenas às Forças Armadas e instituições autorizadas pelo Exército. O preço dessas armas é elevado, seja pelo mercado legal ou clandestino.

Uma pistola custa cerca de R$10 mil, um revólver, o mais barato, gira em torno de R$5 mil, e um fuzil pode chegar a R$100 mil. A diversidade e o poder de disparo dessas armas indicam preparação planejamento sofisticado por parte dos grupos.

Esse alto valor indica que, muitas vezes, os assaltantes com armas de grosso calibre têm o financiamento de uma facção criminosa por trás, como o PCC e outras do crime organizado. “Quanto maior o calibre, mais caro é”. Se um criminoso é preso com uma arma desse tipo, há indícios de atuação de uma organização, explica o criminólogo e professor Jean Alves.

Jean Alves 2025 10 16 13 49 09
Jean Alves, criminólogo, avalia mudanças no padrão das ações criminosas – Crédito: Gabriel Bovo

Novo Cangaço: cidades menores se tornam alvos 

Os mega-assaltos ocorridos em 2016 e 2018 estavam vinculados a uma “orcrim” – especificamente ao Primeiro Comando da Capital – e eram financiados em larga escala. Hoje, esse tipo de assalto, grande e articulado, praticamente não ocorre. “A polícia se equipou, se preparou, tem braço específico para fazer uma contraproposta imediatamente, assim como os órgãos de segurança pública”, afirma Jean Alves.

Na época, havia subdivisões bem definidas e um custo elevado: estima-se que R$5 milhões foram gastos para viabilizar esses roubos – um montante que criminosos de menor porte não têm como bancar.

Desde os mega assaltos às empresas Prosegur e Brinks, a principal mudança nas estratégias dos grupos criminosos foi a fragmentação das ações. Na avaliação do criminólogo Jean Alves, o ataque à Brinks funciona como uma “peça do quebra-cabeça” montado pelas investigações: lideranças centrais ligadas ao PCC passaram a contratar executores diferentes para cada ação, em uma tentativa de desvincular os comandos dos executores e dificultar a investigação.

Com o tempo, aqueles núcleos criminosos se desfizeram. Parte dos integrantes foi morta, outros presos, alguns fugiram e passaram a “viver outra vida” com documentos falsos. Ainda assim, restaram pessoas motivadas pelo lucro que passaram a replicar a ideia dos grandes assaltos, porém sem o mesmo apoio financeiro, logístico ou de segmentação – muitas vezes sem ligação direta com o crime organizado. “E o padrão é esse: dificilmente a gente vai ver, pelo menos em grandes cidades, grandes roubos”, explica Jean Alves.

Com a perda da estrutura, esses resquícios de criminosos, agora em grupos menores, têm migrado para municípios do interior. A razão se deve ao menor policiamento ostensivo e menor infraestrutura de segurança, o que torna o ataque mais “viável” nas pequenas cidades.

Outra modalidade de assalto usada devido à simplicidade operacional, são os ataques a alvos menos protegidos, como carros-fortes. Esses veículos de transporte, muitas vezes, contam com apenas quatro vigilantes e são surpreendidos mais facilmente do que uma instalação com cofres, barreiras e sistema de monitoramento.

Este tipo de crime tem se intensificado no estado de São Paulo. Uma pesquisa realizada por esta equipe de reportagem em órgãos de imprensa de Ribeirão Preto observou-se que nos últimos dez anos, de 2015 até 2025, 27 cidades paulistas tiveram assaltos relacionados a carros-fortes, agências bancárias e transportadoras de valores.

Entre elas, apenas uma possui mais de 1 milhão de habitantes; seis têm entre 300 mil e 1 milhão; e a grande maioria, 19 cidades, contam com menos de 300 mil moradores. O levantamento evidencia uma mudança no perfil das ações criminosas, que passaram a acontecer com maior frequência em cidades menores.

Cidades do interior de SP que foram alvos do Novo Cangaço nos últimos 10 anos



BAEP: mudanças na estratégia policial e nas empresas de valores

Coronel Rodrigo Quintino2 2025 10 16 13 53 52
Rodrigo Quintino, coronel da PM, destaca o papel do BAEP no combate a crimes organizados – Crédito: Tatiana Urbano

Após os ataques a transportadoras de valores em Ribeirão Preto, tanto as forças de segurança quanto as empresas do setor passaram a adotar medidas mais rigorosas de prevenção. O criminólogo Jean Alves lembra que em 2016 a cidade não contava com o Batalhão de Ações Especiais da Polícia (BAEP), criado justamente para lidar com ocorrências de maior risco. Na época, a atuação ficava restrita à Força Tática, com poucas viaturas disponíveis durante a noite e outro tipo de preparo.

Hoje, o cenário é diferente. Os policiais passam por treinamentos específicos, utilizam armamentos de grosso calibre e podem ser acionados rapidamente pelo 190 do Copom (Centro de Operações da Polícia Militar) em casos de ataques de grande porte. O Centro, por sua vez, aciona o BAEP que atua em 93 municípios da região de Ribeirão Preto.

O coronel da Polícia Militar, Rodrigo Quintino, destaca que o BAEP é uma unidade especializada em ocorrências de alta complexidade, incluindo crimes organizados chamados “domínios de cidades”, quando quadrilhas fortemente armadas tomam municípios inteiros. Segundo o coronel, o batalhão possui modalidades diferenciadas de policiamento, como canil e cavalaria, e os treinamentos envolvem tiro com fuzil, defesa pessoal e simulações conjuntas com outras forças da corporação. Além disso, as viaturas são blindadas, comportam equipes maiores e contam com equipamentos de proteção individual e táticos.

jorge cury 2025 10 16 13 57 07
Delegado Jorge Cury aponta avanços na inteligência da Polícia Civil – Crédito: Emily Carvalho


Quanto à Polícia Civil, os avanços ocorrem na área de inteligência. O atual delegado do Deinter-3, delegado Jorge Cury, afirma que equipamentos e sistemas têm sido modernizados. “Nós temos sistemas modernos, ligados a câmeras e bancos de dados, que servem de material para investigação. Esse suporte tem sido fundamental para dar respostas rápidas a crimes dessa natureza”.

Além disso, a integração entre Polícia Civil, Militar e Federal foi fortalecida, o que é essencial no combate ao crime, especialmente os mais ousados, afirma Cury.  Segundo o delegado, o trabalho também envolve um acompanhamento mais próximo das quadrilhas especializadas.

“Esses grupos não se limitam a um município. Eles atuam em rede e em vários estados. Por isso, precisamos de cooperação interestadual e nacional para identificar padrões e evitar novos ataques”.

Mudanças nas empresas

As mudanças também chegaram às empresas. A Prosegur informa que reforçou a segurança de todas as suas bases no país, em um processo que começou em 2016 e terminou em 2018. Segundo Francesco Papagno, diretor de Gestão de Riscos, foram instalados equipamentos capazes de inutilizar o dinheiro em caso de tentativa de roubo. “Dentro do que a legislação permite, ampliamos nosso armamento, investimos em armas semi-automáticas e estruturamos um grupo tático de formação para treinar vigilantes em nível nacional”, explica.

O caso de Ribeirão Preto serviu como referência para a expansão de medidas em outras unidades da empresa. Entre as iniciativas, estão o uso de inteligência artificial no controle de acesso e a realização de simulações em parceria com as polícias Civil e Militar em cidades estratégicas. Embora a legislação ainda não tenha avançado no endurecimento das penas, Papagno afirma que a cooperação com as autoridades se intensificou. 

Como as armas chegam às mãos dos criminosos

Jean Alves explica 2025 10 16 14 03 01
Jean Alves, criminólogo, explica como armas chegam às mãos de organizações criminosas – Crédito: Gabriel Bovo

Segundo Jean Alves, as armas chegam às organizações criminosas de diversas formas. Algumas são roubadas diretamente de colecionadores, atiradores e pessoas que as possuem legalmente. Além disso, existem casos em que indivíduos compram armas legalmente e depois as revendem para criminosos.

“Temos muitos exemplos de como essas armas foram vendidas legalmente e acabam caindo na mão dos criminosos”, diz o criminólogo. Para Alves, a medida do Governo Federal de restringir a compra de armas pela população civil foi necessária para cortar o acesso à arma de fogo desde a raiz. Ele reconhece que o crime ainda possui armamento, mas ressalta que a ação dificulta o acesso e cria obstáculos que levarão anos para serem totalmente revertidos.

Brinks armas dos bandidos copia 2025 10 16 14 04 38
Armas apreendidas em operações contra quadrilhas ligadas ao ataque à Brinks, em Ribeirão Preto – Crédito: Acervo EP/EPTV

“A população civil não deve ter acesso à arma de fogo. Isso deve ser reservado às forças policiais”, defende o especialista. Outra questão é a dos explosivos usados em mega-assaltos.

Esse material é de uso ainda mais restrito do que armamento de grosso calibre e os grupos criminosos dependem do mercado clandestino ou do roubo direcionado para comprá-los. Muitas vezes, são furtados dinamite de mineradoras, indústrias e outros locais que a utilizam legalmente e a transformam em instrumentos de ataque em assaltos planejados.

explosivo 2025 10 16 14 05 32
Explosivos usados no assalto à Prosegur, em Ribeirão Preto, em 2016 – Crédito: Acervo EP/EPTV

Segundo Alves, a execução de ações com explosivos envolve planejamento e pessoas com preparo específico. Muitas vezes, há indícios de que policiais ou ex-policiais tenham sido contratados para operar o material. Ele também ressalta que, quanto mais complexo o ataque, maior a necessidade de coordenação e conhecimento técnico, reforçando o vínculo entre sofisticação do crime e participação de uma estrutura organizada e altamente especializada.

A Cidade – 120 Anos

O especial A Cidade – 120 Anos é um projeto multimídia do acidade on Ribeirão, em parceria com o curso de Jornalismo da Unaerp e o Acervo EP/ A Cidade

Esta produção é dos alunos do curso de Jornalismo da Unaerp Emily Pereira De Carvalho, Livia Mayumi Anze, Gabriel Bovo Pereira e Isadora Corrêa Garbellini sob supervisão dos professores Gil Santiago, Guilherme Nali, Jefferson Barcellos, Elivanete Z. Barbi e Flávia Martelli.






















Notícias Relacionadas