ILHA DE MARÉ, BA (FOLHAPRESS) – Joabe Bonfim, 1 ano, aperta os olhos e os cobre com antebraço assim que chega à varanda de casa. A luminosidade o incomoda, mas não quer voltar para dentro da sala escura: pede para ir para o barco, onde o pai, pescador, foi trabalhar.
O pedido não foi atendido pela mãe, Micaela Bonfim, 24. É perto de meio-dia, e o sol forte é perigoso para Joabe, que nasceu com albinismo, condição genética que causa deficiência na produção da melanina.
Joab é o caçula entre os albinos nascidos na Ilha de Maré, ilha com 4,2 mil moradores na baía de Todos-os-Santos que pertence a Salvador, mas não tem ligação por terra com o continente.
A ilha é um dos lugares com maior proporção de pessoas com albinismo na Bahia, segundo estudo do programa de Genética e Sociedade do Instituto de Biologia da UFBA (Universidade Federal da Bahia).
Ao todo, dez pessoas nasceram com albinismo na Ilha de Maré nos últimos 35 anos. Seis delas ainda moram por lá: José Carlos, 35, Angélica, 27, Ediane, 20, Janine, 14, Marimar, 13 e Joabe, 1.
Todos são da mesma família, irmãos ou primos em primeiro ou segundo grau. Nasceram de pais negros 92% da população da Ilha de Maré se declara preta ou parda , em sua maioria pescadores e marisqueiras do povoado de Bananeiras, uma das áreas mais isoladas da ilha.
O albinismo é mais frequente em pessoas de pele negra. Entre brancos, a condição genética atinge uma pessoa a cada 36 mil. Entre os negros, essa proporção cai para um caso a cada 10 mil habitantes nascidos. Na Ilha de Maré, esta proporção é ainda maior: o registro é de um caso a cada 700 habitantes.
O cenário é parecido em outras comunidades na Bahia, caso por exemplo da Ilha do Sapinho, em Maraú, Baixo-Sul do estado. A ilha tem cerca de 500 moradores, cinco deles com albinismo.
Além da pele branca, a falta da melanina causada pelo albinismo frequentemente gera problemas de visão como estrabismo, miopia, hipermetropia, astigmatismo e fotofobia. A condição também demanda o uso constante de protetor solar, já que o contato com o sol por causar queimaduras e até câncer de pele.
O isolamento das comunidades, contudo, transforma em uma espécie de odisseia o acesso ao tratamento e prevenção das doenças causadas pelo albinismo. Na Ilha de Maré, há apenas uma unidade básica de saúde, mesmo assim do lado oposto ao do povoado de Bananeiras.
Para ter acesso ao filtro solar e ao atendimento oftalmológico especializado, os portadores de albinismo precisam ir até continente. Angélica Bonfim, 27, é uma das portadoras de albinismo que tentam seguir as ações de prevenção à risca.
Para isso, enfrenta obstáculos em série. O primeiro é uma travessia de 30 minutos de barco entre o povoado de Bananeiras e o cais de São Thomé de Paripe, subúrbio de Salvador.
Da sua casa até o cais, são 20 minutos de caminhada por vielas sem pavimentação. Como não há atracadouro, ela precisa caminhar dentro do mar até chegar ao barco. Mas nem sempre as condições climáticas são favoráveis à travessia e ela diz que já perdeu consultas por não conseguir embarcar.
Quando consegue atravessar, ainda precisa pegar um ônibus até o Instituto dos Cegos, instituição que faz o acompanhamento oftalmológico dos portadores de albinismo. Como tem dificuldade de enxergar o nome do destino final dos ônibus, vai sempre acompanhada, o que dobra os custos com transporte.
“O gasto é enorme porque, para qualquer exame ou consulta, temos que atravessar de barco. Não existe assistência aos albinos na ilha, não recebemos visita de médicos. A gente que vai aprendendo e se protegendo de uma forma ou de outra”, afirma Angélica.
Ela e o irmão José Carlos Bonfim, 35, estão há pelo menos um ano sem óculos e sem acesso constante ao bloqueador solar, considerado essencial para evitar queimaduras. Em geral, eles recebem frascos de forma irregular, sempre mandados por portadores que vêm do continente.
A secretaria municipal da Saúde de Salvador diz que possui um programa para albinos no qual cada paciente recebe mensalmente até oito frascos de protetor com FPS 50. O programa tem 115 pacientes cadastrados, mas nenhum deles é da Ilha de Maré.
Diretor da Apalba (Associação de Pessoas com Albinismo na Bahia), Joselito Pereira Luz afirma que a entidade luta há dez anos pela implementação de uma política de atenção integral à pessoa com albinismo com foco na proteção e no autocuidado.
“A ideia é iniciar um trabalho que comece ainda na maternidade. É o tipo de programa que aumenta a expectativa de vida e até gera uma redução de custos para o erário. Uma pessoa sem a devida proteção certamente vai acabar no hospital com câncer”, diz.
Joselito destaca que, no caso das comunidades isoladas, o acesso a ações de prevenção e assistência médica é ainda mais difícil. E defende uma política de atendimento integrado para essas comunidades.
“É preciso integrar, por exemplo, o atendimento da oftalmologia e da dermatologia para que os pacientes com albinismo façam as duas consultas no mesmo dia e não tenham que atravessar duas vezes”.
Em nota, a prefeitura de Salvador diz que oferece consultas e exames na rede de atenção básica e especializada. O governo da Bahia informou que tem atuado na discussão e implementação de políticas públicas para pessoas com albinismo, com atenção especializada em dermatologia e oftalmologia.
A pobreza das famílias é um obstáculo a mais. A família de Angélica e José Carlos, por exemplo, vive com um salário mínimo da aposentadoria da mãe, a marisqueira Evanildes dos Santos, 56.
Evanildes conta que, quando José Carlos nasceu há 35 anos, não tinha a menor noção sobre os cuidados necessários para lidar com o albinismo. “Tive que aprender sozinha a cuidar dos meus branquinhos. São minhas duas bênçãos.”
Os dois filhos, mesmo já adultos, têm dificuldades em conseguir trabalho. A comunidade vive quase integralmente em torno da pesca e do marisco, atividades ao ar livre. Menos disciplinado que a irmã, José Carlos às vezes ainda encara o sol e sai para pescar, mas diz que, inevitavelmente, termina com queimaduras no corpo.
O acesso à escola também é difícil. Em geral, a evasão escolar é quase uma regra entre os portadores de albinismo em comunidades mais pobres. As escolas nem sempre estão preparadas a ofertar uma educação inclusiva.
Na Ilha de Maré, a escola do povoado vai até o ensino fundamental. Da família, só Angélica completou o ensino médio, com travessias diárias para estudar no município vizinho de Candeias.
No início do ano, começou um curso de espanhol, também em Candeias, mas as aulas foram suspensas com a pandemia. Seu maior objetivo é conseguir cursar uma faculdade e viajar pelo mundo: evangélica, sonha conhecer Israel.
José Carlos deixou a escola ainda no ensino fundamental e quer mesmo ser músico. Aprendeu a tocar teclado no instrumento de um amigo, mas ainda não tem o seu próprio. Gosta de tocar músicas românticas, como serestas e arrochas.
Primas de Angélica e José Carlos, as adolescentes Janine Bonfim, 14, e Marimar Simões, 13, também convivem com as dificuldades provenientes do albinismo, mas frequentam a escola no povoado de Praia Grande, o mais populoso da ilha. Na maior parte das vezes, vão para a escola de barco.
As duas também não tem acesso constante aos protetores solares e têm problemas na visão que requerem acompanhamento.
Sem poder se expor ao sol forte do verão da ilha, Janine tem o celular como principal distração. Na maior parte do tempo, está com os olhos grudados na tela jogando o game Free Fire.
Marimar não é muito fã dos games, mas também fica o dia inteiro no celular, mesmo com problemas nos dois olhos. Gosta de cantar e quase sempre está vendo vídeos do cantor de arrocha Devinho Novaes, de quem é fã.
Prima das duas, Angélica diz torcer por um futuro de menos dificuldades e mais independência para os portadores de albinismo da Ilha de Maré. Mesmo sem o devido apoio, ela já trilha um caminho nessa direção: está construindo a sua própria casa. Depois de 27 anos, vai morar sozinha.
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Albinos da Ilha de Maré, na Bahia, enfrentam isolamento e lutam por atenção à saúde
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