O “Fecha Corpo”, tradição que resiste há décadas e carrega o status de atrair milhares de visitantes a Monte Alegre do Sul a cada Sexta-feira Santa, se adapta aos tempos de pandemia e traz uma versão inovadora em 2021. No ano passado, depois de 71 anos interruptos, o evento presencial foi suspenso por conta da chegada da covid-19. Agora, a família de Maurício Valente, que mantém viva a chama acesa pelo avô Zezé, em 1948, vai usar a rede social Instagram para o fazer o primeiro “Fecha Corpo Delivery”.
As garrafinhas, com a famosa mistura de cachaça curtida na arruda ou guiné, vão chegar ao público fiel à crença por meio de encomendas. “A tradição deve ser mantida. Ela dá visibilidade ao município e projeta Monte Alegre do Sul para que mais pessoas possam conhecer a cidade, quando a pandemia passar”, diz o fotógrafo, de 53 anos.
Ele não mede esforço para que a memória do avô seja preservada. “Além do valor histórico é uma tradição de uma importância de âmbito regional que cada vez mais ganha adeptos”, diz.
“FECHA CORPO”: O QUE REZA A HISTÓRIA
O “Fecha Corpo” surgiu em 1948, há 73 anos, em Monte Alegre do Sul. Trata-se de um período delicado da vida de Zezé Valente, patriarca da família, que repentinamente adoeceu. Ele procurou médicos, fez tratamentos com medicamentos e tomou remédios de receitados por amigos. Não obteve sucesso.
Como esperança procurou a benzedeira Nhá Sabá, que lhe ensinou uma receita para se livrar do mal, que segundo ela, era uma doença espiritual. Para que fosse curado, Zezé deveria colher folhas de arruda ou guiné, ainda úmidas de orvalho, na madrugada da Sexta-feira da Paixão. Deveria também colocar as folhas em infusão na cachaça ou pinga para que no raiar ainda da sexta-feira, bebesse uma dose em jejum.
Zezé fez o ritual e se curou. Impressionado com o resultado, ele resolveu repetir o ato em toda Sexta-feira Santa. A notícia se espalhou e seus amigos e conhecidos passaram a frequentar sua casa todos os anos no feriado da Paixão de Cristo, em busca da poção milagrosa. A procura pela bebida de Nhá Sabá se tornou tão tradicional que ganhou fama em toda Monte Alegre do Sul e atingiu também outras cidades.
Anos após a morte de Zezé, a família de Maurício Valente ainda mantém a rotina de distribuição da mistura com cachaça, que vem acompanhada de um pequeno pão com aliche, um tacanho peixe de origem mediterrânea.
TURISMO PREJUDICADO
Desde 2020, o mundo enfrenta um novo normal. A mudança no cotidiano das pessoas impossibilita a formação das longas filas já na madrugada da Paixão de Cristo em Monte Alegre do Sul. Era o que se via em anos anteriores. Filas de perder de vista, com 800 até mil pessoas ao mesmo tempo em busca da senha para garantir as doses gratuitas do “Fecha Corpo”, distribuídas entre 6h e 9h.
Assim que terminavam as nove badaladas do sino do Santuário do Senhor Bom Jesus, único da cidade e da região do Circuito das Águas, as portas da antiga casa onde viveu Zezé Valente, no Centro Histórico, se fechavam. Mas a esperança de conseguir a bebida não estava perdida.
Quem assumia a função de continuar a distribuição eram as dezenas de adegas e alambiques instalados na estância. A pandemia brecou isso também. De acordo com os proprietários da Adega Peterlini, mil doses do “Fecha Corpo” eram servidas gratuitamente para quem perdeu a hora no período pré-pandemia. Este ano eles acreditam que não terão qualquer movimentação no feriado que se aproxima.
“Agora, em 2021, não vamos fazer nada. Estamos com o movimento 80% mais fraco em comparação a antes da pandemia. Os negócios estão muito afetados, então não vamos distribuir, até porque não pode presencialmente e não montamos nada voltado à internet”, comenta Elaine Peterlini, que faz parte da família responsável pela adega no Sítio Morro Alto.
Rodrigo Borin, da Adega Chora Menina, também constata que o faturamento nos negócios caiu bastante, cerca de 70%. A adega da família Borin chegou a distribuir 100 litros da mistura em 2019, o que totaliza cerca de 2.000 doses de 50 ml. Este ano também não há planos para o “Fecha Corpo” no feriado de Sexta-feira Santa.
“FECHA CORPO” EM CASA
Mauricio Valente, neto de Zezé, diz que distribuição, que antes era gratuita e bancada pela própria família, este ano terá um custo de R$ 15, além do frete, para uma garrafa contendo 150 ml da mistura cachaça com arruda ou guiné.
Mas não espera muito. “A movimentação está fraca e poucos pedidos foram feitos até o momento. Alguns moradores de Monte Alegre do Sul e outros pedidos que vieram da capital do estado, em São Paulo. A garrafinha será enviada para que a tradição não passe em branco”, ressalta. Os pedidos podem ser realizados através do Instagram e a entrega e frete serão combinados diretamente com os donos da história.
(Por Rebeca Freitas com supervisão de Ivan Lopes)