A reconstrução do muro do Cemitério da Saudade, em Campinas, tem dividido opiniões sobre a nova paisagem dessa área no bairro. O maior cemitério municipal da cidade, localizado próximo à região central, era cercado por muros brancos e altos, que impediam a visualização de sua área interna.
Agora, quem passa pelas principais vias do bairro, como a Rua da Abolição e pelas avenidas da Saudade e Engenheiro Francisco de Paula Souza, consegue ver o novo muro, que foi instalado com grades, revelando as sepulturas do local. A proposta do novo muro é que sejam cultivadas plantas na grade, formando uma cerca viva para ocultar a parte interna do cemitério.
O cemitério, localizado no bairro Ponte Preta, é o mais antigo da cidade e abriga mais de 32 mil sepulturas em 181,5 mil metros quadrados. A reconstrução completa do muro foi necessária após vários problemas, incluindo desabamentos parciais da estrutura nos últimos anos. No final do ano passado, um trecho de 20 metros desabou durante o período de chuvas, e foi fechado por tapumes.
A construção do novo muro começou em março e segundo a Prefeitura já chegou a 60% de conclusão, mantendo a previsão de ser finalizada até setembro. Segundo a Administração, ao final da obra será plantada uma cerca viva, que terá a função de “melhorar ainda mais o visual do cemitério”. No entanto, até que a cerca viva seja instalada, o cenário divide opiniões.
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SEPULTURAS À MOSTRA
A nova paisagem que revela os túmulos do Cemitério da Saudade tem gerado opiniões divididas entre moradores, comerciantes e funcionários da região. Anteriormente, o cemitério estava “encoberto” por um muro, mas agora, com a instalação do gradil, a existência do cemitério fica bastante aparente.
Silvio Ferreira da Silva que trabalha como vendedor disse que a mudança o incomodou. “Foi muito impactante não ver mais o muro. Na minha percepção acho que poderiam reformar e deixar o muro fechado. O gradil não me agrada”, afirmou.
Ele ainda destacou que acha bastante desagradável a nova visão. “Todo cliente que vem comprar aqui, se depara com a grade, assim, aberta. Todos comentam que aqui ficou assustador. Impacta porque é diferente né? A gente vê vários cemitérios, pelo menos todos que eu já vi, são fechados. Esse de repente, ficou aberto, mas não ficou legal não”, finalizou.
O advogado Igor da Silva, que mora no bairro, também afirmou não gostado da nova “vista”.
“Antes, até esquecia que havia um cemitério. É estranho porque é um cemitério no meio da cidade, que não é comum. Agora a gente vê os túmulos e é meio ‘macabro’. Fora que agora lembramos sempre da morte”, afirmou.
O advogado também levantou outra questão, nos enterros. “Acho que para quem está dentro, sepultando alguém, é desconfortável. Tira a privacidade de um momento tão doloroso. As pessoas vendo da rua parece ser insensível”, opinou.
Já a dona de casa Vera Lúcia Lopes não achou ruim a nova vista. “Achei que ficou melhor assim, porque o muro estava com risco de cair e tínhamos medo. A gente acabava desviando. Tinha infiltração de água também, então eu achei que ficou melhor”, disse Vera.
O risco de queda também foi levado em conta pela moradora Luiza Antônia. “A segurança para o cemitério ficou boa porque dá para ver as pessoas que estão lá dentro. Quando passa alguém na rua e vê alguma coisa estranha no cemitério dá pra avisar”, opinou.
SEGURANÇA
A falta de segurança do cemitério também foi lembrada pelos defensores e críticos do novo muro com gradil. Frequentemente, o cemitério é alvo de criminosos que invadem o espaço para furto de placas de cobre.
Arianderson Soares Sousa, atendente de um comércio de ar-condicionado localizado na Avenida Antônio Francisco de Paula Souza, disse que agora pode ser que os furtos caiam.
“Acho melhor. A gente olha e, se de repente algo de errado acontece, dá para avisar a polícia e dá para resolver mais rápido”, opinou.
Já o vendedor Silvio Ferreira da Silva acredita que a abertura chama ainda mais a atenção de criminosos.
“Não achei que ficou mais seguro, porque existem placas de bronze, por exemplo. Aqui na avenida, de noite, é uma avenida bem tranquila, e têm muitos criminosos que inclusive pulam nas lojas. Essas placas de bronze chamam a atenção deles, e agora eles têm a visão de onde essas placas ficam. Se o cemitério não colocar segurança logo eles vão tem problema com esse aspecto”, acrescentou.
A professora Ana Carolina Alves disse que se preocupa com o tamanho do muro, além da proliferação de animais peçonhentos.
“Acho que a ação da prefeitura, quando pensa no cemitério como um ambiente histórico, faz sentido. Mas algumas coisas me preocupam como as invasões que antes já aconteciam tendem a ser ainda mais simples. Talvez com a cerca viva possa ter um aumento no número de animais peçonhentos, circulando pela região, porque eles que já são comuns dentro desses espaços. Além disso, pode gerar um desconforto para população do entorno, porque apesar de ser histórico. O cemitério está bem conservado”.
Segundo a Setec, autarquia municipal responsável pelos cemitérios municipais em Campinas, a nova configuração do muro de 3,50 metros de altura, com uma parte em alvenaria e outra em gradil, tem objetivo de “proporcionar mais leveza e suavidade à obra”, “causando melhor impressão aos munícipes que passam pelo local”.
A Setec informou que o projeto foi desenvolvido pela secretaria de Serviços Públicos e a visibilidade do gradil têm dificultado os furtos no espaço, mas contra as reclamações, a autarquia reforçou a previsão do plantio de uma cerca viva em todo o entorno.
“A ideia é proporcionar mais leveza ao muro, melhorando a questão paisagística de toda a área. Pelo fato de ter mais visibilidade, fica mais difícil para os meliantes se esconderem. Além disso, a Setec já providenciando a instalação de câmeras de segurança”, informou.
A colocação de cerca viva é apoiada pela moradora Luiza Antônia: “Em primeiro momento eu achei que ficou meio estranho, mas depois eu me acostumei, mais aberto, mas acho que a folhagem vai ficar melhor sim pra vista, visualmente vai ser melhor”.
REFLEXÃO
“Desde que mudou acho que tem gerado bastante reflexão. A princípio tem um preconceito, uma repulsa pelos túmulos que representam a morte, e isso é errado. Porque o cemitério não deveria ser visto com medo, mas sim como memória. Ao mesmo tempo agora a gente lembra da vida, que todos ali, um dia estiveram vivos e que um dia todos nós vamos morrer. Lidar e aceitar a morte relembra da necessidade de viver”, afirmou a dona de casa Adania Couto.
DE OBRAS DE ARTE A MILAGREIROS
O Cemitério da Saudade, inaugurado em 1881, abriga cerca de dois milhões de mortos, número maior que a população atual da metrópole – atualmente estimada em 1,2 milhão de habitantes, e mantém guardado parte da história da cidade não apenas em seus restos mortais, mas também esculpida em mármore, granito e bronze.
Tombado pelo Condepacc (Conselho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cultural de Campinas) em 2004, o cemitério campineiro é, segundo especialistas, um dos mais importantes no país por causa relação ao patrimônio histórico e artístico e cultural que contém – e que segue desconhecida por boa parte dos campineiros.
Fundado em 1881, o espaço pode ser considerado um verdadeiro acervo, com obras de imigrantes italianos, que atendendo a demanda da alta burguesia da cidade produziram, pela arte tumular, diversas esculturas, altares seguindo o padrão de arte renascentista e moderna.
Entre os autores com obras assinadas, estão italianos como Lelio Coluccini (escultor neoclássico e modernista que além de Campinas tem obras em São Paulo, na praça da República e no Parque do Ibirapuera), além de Giuseppe Tomagnini, Marcelino Velez, J.Rosada e Wilmo Rosada, Aldo Puccetti, Nicola del Nero e Albertini, entre outros nomes importantes.
A HISTÓRIA
Com 112 quadras dispostas em uma área de 181,5 mil metros quadrados, o Cemitério da Saudade é formado por cinco cemitérios que existiam na Vila Industrial e tiveram os túmulos transferidos como uma forma de levar a necrópole para mais longe da cidade.
Apesar da tentativa, hoje o cemitério está localizado entre duas principais avenidas da cidade, e a dois quilômetros da região Central.
O complexo é constituído pelos cemitérios Cura Dars (para vítimas de febre amarela), Cemitério São Miguel e Almas (para os negros católicos), Cemitério Terceira Ordem do Carmo, Cemitério Santíssimo Sacramento (destinados a brancos católicos) e Cemitério São José.
A diferenciação desses cemitérios – que são “separados” por quadras – é percebida visualmente pelo material e a estética empregada nos diferentes tipos de construções, o que demonstra também a divisão social da época.
PERSONALIDADES
Além do patrimônio artístico, as alamedas do cemitério abrigam também importantes personalidades da cidade e do país. Nelas estão enterrados os heróis da Revolução de 32 – que ganharam um monumento próprio em sua homenagem -, além de nomes como Francisco Glicério, Ramos de Azevedo, Bento Quirino, Mário Gatti, Hercules Florence e tantos outros membros da antiga nobreza da época do império.
Apesar das diversas personalidades sepultadas, os túmulos mais visitados e que desbancam a atenção das caríssimas artes são na verdade os de pessoas que ficaram conhecidas após a morte.
Das sepulturas famosas do cemitério da Saudade, estão três túmulos classificados como de “milagreiros”. Entre eles o escravo Toninho, escravo do Barão Geraldo de Rezende. Morto em 1904 e sepultado ao lado dos jazigos de mármore carrara do ex-senhor, Toninho coleciona centenas de placas de agradecimentos por milagres alcançados.
Além dele, há o túmulo de Maria Jandira, uma prostituta que ateou fogo ao corpo quando teve seu casamento desfeito e os “três anjinhos” – três crianças que morreram em decorrência de um incêndio na casa onde moravam -, que também recebem fiéis que agradecem as graças obtidas.
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