Você já ouviu falar sobre milagreiros de cemitérios? Não sei se existe alguém mais apaixonado pelo tema do que eu, então vamos do começo. O fenômeno cemiterial que faz eclodir uma devoção a um milagreiro ou milagreira de cemitério é inicialmente observado a partir do catolicismo não oficial ou catolicismo rural.
Além disso, como bem explica o maior conhecedor do assunto no Brasil, meu querido amigo e Professor Lourival de Andrade Junior, a relação direta dos milagreiros com seu território de enterramento e/ou locais de vivência da devoção, evidencia sua principal característica, que é a de consistirem em devoções locais.
Portanto, sem ignorar a relevância do processo canônico de outorga do título de santidade, que só a Igreja Católica pode conferir, entendo que as manifestações devocionais associadas a milagreiros de cemitério trazem componentes regionais únicos:
- Eles compreenderiam perfeitamente as angústias e necessidades de seus devotos, já que seu altar de graças se estabelece no local de vivência daqueles que creêm;
- Essas expressões de fé são incrivelmente autônomas e independem do aval institucionalizado de religiões.
É uma relação que afeta à espiritualidade e não religiosidade, daí o motivo de estudarmos seus processos e garantirmos sua proteção, já que, ao menos para este que vos escreve, são patrimônios imateriais das comunidades.
Exatamente por isso, milagreiros de cemitério não são santos, já que quem legitima seu poder divino é o devoto e não a Igreja ou qualquer instituição religiosa. Hoje, eles já estão completamente adaptados a outras religiões como o Espiritismo e a Umbanda, além do catolicismo
Milagreiros de cemitério de Campinas
Escrevemos nosso primeiro livro sobre Milagreiros de Cemitério de São Paulo, que será laçado em 02 de novembro desse ano, mas já preparamos uma obra para tratar dos milagreiros de cemitério de Campinas, já que nossa principal Necrópole, o Cemitério da Saudade, possui 23 túmulos com processos devocionais.
São 13 túmulos de crianças, seis de mulheres e quatro de homens. As histórias mais conhecidas, sem dúvida, são as da Maria Jandira e do Antônio Africano, correndo por fora a dos Três Anjinhos, que possuem muitas versões e hipóteses para a morte das quatro crianças que ocupam o túmulo logo na entrada do Cemitério da Saudade.
A versão mais difundida é a de que as quatro crianças, Jonas, Tácito, Ezilda e Luíza, filhos de Firmino Tamandaré de Toledo e Antonia de Carvalho Toledo, morreram em um incêndio na casa da família, em 07 de outubro de 1896. Contudo, existem outras versões sobre a morte das crianças, inclusive uma em que elas foram apedrejadas.
Claro que é impossível contar todas as histórias em um artigo, mas vou revelar uma que é pouco difundida no imaginário popular e que traz o martírio de uma mulher vítima de uma violência atroz.
“A Moça da Estrada”, a milagreira do Cemitério da Saudade
A campa da desconhecida se posta próximo ao muro do Cemitério da Saudade, na quadra 39, uma das últimas da Necrópole. Antes de ser roubada, havia uma placa em sua homenagem, assinada pela Fundição Princesa D´oeste.
Essa história, escondida desde os anos 1960, foi um mistério na cidade e gerou um processo devocional até na estrada de Joaquim Egídio, onde foi encontrado o corpo de uma jovem, queimando da cintura para cima. A “Desconhecida”, no ano de 1965, era chamada de “A Moça da Estrada”.
A cena horrorosa exibia o resultado da perversidade que cometeram com uma mulher que estava nua e ainda em chamas quando foi encontrada. Existem duas versões para a condição em que se encontrava o cadáver:
- Uma é a de que este estava completamente carbonizado, ficando apenas uma das mãos livre de ferimentos.
- A outra versão dá conta de que ela estava queimada da cintura para cima e há um suposto laudo de que a moça havia sido violentada. Esses indícios seriam fundamentais para apontar seu algoz ou razões para ele tentar esconder sua verdadeira identidade, o que, à reboque também poderia identificar seu assassino.
Tudo é muito nebuloso no caso. Seu corpo ficou no necrotério por um período relativamente longo, por não ter sido reclamado por familiares e amigos, mesmo tendo havido inúmeras incursões populares no Instituto Médico Legal para o reconhecimento de seus restos mortais.
O sepultamento foi em 1966, mas antes, o caso gerou muita notícia e a aparente falta de informações na atualidade não traduzem o sentimento da época, especialmente aquele cultivado pela imprensa. O caso era reportado cotidianamente, ergueu-se um pequeno santuário em Joaquim Egídio, no local onde o corpo foi encontrado, ocorrendo inclusive romarias e grupos de oração.
A desconhecida seguia os trilhos de Maria Jandira e logo, além de milagreira, também se transformou em pomba-gira na Umbanda. Ela possui um número tímido de ex-votos, uns seis ou sete, mas, em sua campa velário, existem muitas marcas de velas e de itens imagéticos associados à Umbanda e ao catolicismo.
Eu já presenciei demandas em papel com pedidos de graças em dimensões afetivas e de saúde. O triste fim da Moça da Estrada, depois da consternação da cidade e de muita peregrinação, se tornou um símbolo de conversão de uma perversa tragédia em fé e esperança.
Quem é Thiago de Souza
Thiago de Souza é compositor, roteirista e humorista, fundador do grupo “Os Marcheiros” e idealizador do projeto “O que te Assombra?”. Ele também é o criador do programa de políticas públicas para preservação de patrimônio material e imaterial chamado “saudade e suas vozes” já implementado nas cidades de Campinas e Piracicaba. Tem mais histórias assombrosas no Tudo EP (clique aqui pra acessar).
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