BELO HORIZONTE, MG (FOLHAPRESS) – Desde julho deste ano, empresas do setor de energia da China só podem emitir gases de efeito estufa até determinado volume. Quem ultrapassa o limite precisa pagar uma multa ou comprar “licenças de poluição” das companhias que não excederam a cota.
É assim que funciona o mercado de carbono chinês, instrumento que passa a integrar a estratégia do país para zerar suas emissões até 2060.
O modelo não é novidade e já existe na Europa há mais de 15 anos, assim como na Nova Zelândia, no Cazaquistão e em alguns estados norte-americanos.
Mesmo na América Latina, países como México e Colômbia estão em fase final de implementação, enquanto o Brasil vai ficando para trás nesse cenário.
O país não tem um mercado de carbono regulado e ainda está longe de adotar um. Segundo especialistas, o sistema poderia ajudar a reduzir emissões de forma mais efetiva e reposicionar o Brasil no cenário econômico global.
Desde 2015, o Brasil tem compromissos climáticos assumidos no Acordo de Paris que preveem um processo gradual de descarbonização. A meta de redução das emissões foi estabelecida em 37% para 2025 e em 43% para 2030.
Durante a Cúpula do Clima de 2021, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) ainda anunciou um novo objetivo: alcançar a neutralidade em carbono até 2050.
No entanto, com uma política ambiental contestada internacionalmente e números de desmatamento batendo recordes, o Brasil terá dificuldades para cumprir com seus objetivos.
Um dos instrumentos que ajudariam o país a reduzir suas emissões é a criação de um mercado nacional de carbono. O sistema já está previsto desde 2009 na Política Nacional sobre Mudança do Clima, mas não chegou a ser operacionalizado.
O que existe hoje no país é um mercado voluntário, em que algumas empresas assumem metas ambientais por conta própria, como forma de sinalizar suas práticas ESG para investidores, parceiros comerciais e consumidores.
É diferente de um mercado regulado, em que o governo limita a quantidade de gases de efeito estufa em determinados setores e concede permissões de poluição.
Nesse sistema, as empresas recebem um “orçamento” com a quantidade de carbono que podem liberar. Para poluir acima da cota, é preciso comprar mais licenças, que são vendidas por companhias que conseguiram cortar suas emissões.
Ao limitar progressivamente o volume de gases de efeito estufa e autorizar que as organizações comercializem licenças entre si, o governo cria um sistema de pressão e incentivo para que setores econômicos reduzam suas pegadas ambientais.
Dados do Banco Mundial apontam que existem hoje 64 iniciativas de precificação de carbono no mundo, que podem ser em forma de imposto ou de um mercado, também conhecido como ETS (sistema de comércio de emissão, na sigla em inglês).
Na China, o recém-inaugurado ETS inclui apenas empresas termelétricas, mas estima-se que as companhias desta primeira fase sejam responsáveis por 40% das emissões de CO2 do país, que é o maior poluidor do planeta.
Com isso, o mercado chinês é considerado o maior do mundo em volume de emissões cobertas. O sistema europeu continua sendo o maior em transações.
Segundo um levantamento da consultoria climática Refinitiv, o valor movimentado em ETS pelo mundo em 2020 foi de EUR 229 bilhões (R$ 1,4 trilhão), sendo que a Europa é responsável por quase 90% desse total (R$ 1,2 trilhão).
Para Mauricio Colombari, sócio da PwC Brasil, os mercados de carbono são uma prioridade absoluta para enfrentar as mudanças climáticas, e o atraso do Brasil nessa discussão mostra que o assunto ainda não é visto com a devida importância.
“A gente realmente não colocou como uma prioridade, sendo que até nossos vizinhos já estão olhando para isso. Para a nossa reputação, não fica bom”, afirma.
De acordo com uma pesquisa da Associação Internacional de Comércio de Emissões (Ieta), feita em parceria com a PwC, o Brasil é o país latinoamericano com menos propensão a implementar um mercado de carbono no curto prazo.
México e Colômbia devem ser os primeiros a introduzir o sistema na região, acompanhados por Peru e Chile.
Brasil e a Argentina são considerados os menos prováveis a adotar um modelo de comércio de emissões até 2026. No entanto, a desconfiança é maior no caso brasileiro, com 19% dos entrevistados duvidando que o país vá sequer adotar um mercado de carbono um dia.
Para Colombari, os resultados são reflexo da imagem que o Brasil vem cultivando no exterior em relação a sua agenda ambiental.
“No mínimo, a gente não tem dado as mensagens nesse sentido. Temos que trabalhar isso melhor, até porque essa é a principal política pública que os outros países estão adotando em relação às mudanças climáticas.”
Apesar do atraso na implementação, o Brasil tem um estudo pronto sobre a viabilidade e os impactos socioeconômicos de um mercado de carbono.
O projeto, chamado PMR Brasil, foi uma parceria do governo federal com o Banco Mundial iniciada em 2016, que avaliou os prós e contras do sistema.
Encerrado em 2020, o programa concluiu que o instrumento poderia ajudar o país não apenas a cumprir com seus objetivos climáticos, mas a se posicionar estrategicamente para aproveitar as oportunidades econômicas que serão criadas.
A CNI (Confederação Nacional da Indústria) foi um dos representantes do setor privado que acompanhou o PMR.
A entidade apoia a regulamentação de um mercado de carbono no Brasil, mas entende que o instrumento deve complementar ações de combate ao desmatamento, fortalecimento da política de biocombustíveis e expansão das matrizes de energia renovável.
“Precificação de carbono é uma das ferramentas para a gente cumprir nossas metas climáticas e reduzir emissões”, diz Davi Bomtempo, gerente-executivo de meio ambiente e sustentabilidade da CNI.
Na visão dele, o Brasil não está necessariamente atrasado no tema, visto que a discussão é nova para a maioria dos países.
“As indústrias já entendem que é preciso desenvolver um mercado e que ele vai contribuir para a competitividade, gerando emprego e renda. O que a gente precisa é pavimentar o caminho para não publicar uma lei e ter dificuldade de implementar”, afirma.
Um dos dispositivos que o Brasil precisaria viabilizar antes de inaugurar o seu mercado de carbono é um sistema de registro de emissões, no modelo chamado MRV (mensuração, relato e verificação).
Atualmente, algumas empresas fazem esse monitoramento por conta própria, com o apoio de firmas de consultoria e auditoria.
Segundo Raoni Rajão, coordenador do Laboratório de Gestão de Serviços Ambientais da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), a ausência de um relato padronizado já indica o quanto o país está atrasado nessa agenda.
“Num contexto onde os principais mercados internacionais estão criando sistemas de registros e precificação de carbono, o Brasil nem sequer mede e monitora suas emissões. Como é possível argumentar que estamos gerindo o problema?”, questiona.
Um dos temas que devem ser discutidos na COP (Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) deste ano é o artigo sexto do Acordo de Paris, que prevê a adoção de um mercado internacional de carbono.
Caso a agenda avance, é de se esperar que países sem iniciativas de precificação possam sofrer sanções comerciais, inclusive ajustes alfandegários.
A Europa já vem se movimentando nesse sentido. No começo do ano, a UE apoiou a criação de um imposto sobre carbono para produtos importados. O objetivo é garantir que as empresas do bloco não vão perder competitividade para mercados onde as restrições ambientais são mais fracas.
Para Rajão, a adoção de um sistema de relato de emissões poderia proteger as exportações brasileiras de eventuais barreiras tarifárias.
“O que não pode acontecer é ficar esperando o comércio internacional modificar suas regras para começar a tomar providências. É isso que o Brasil está fazendo: está esperando para reagir a eventuais exigências, enquanto nossos principais concorrentes estão agindo”, afirma o professor.
Segundo ele, o país precisa fazer política pública para o futuro, não para o passado. “Vamos esperar a União Europeia baixar um regulamento para implementar as medidas de maneira atabalhoada ou vamos fazer uma política econômica que seja ‘future-proof’ [à prova do futuro, em português]?”
No Congresso, a proposta mais avançada em relação ao tema é o projeto de lei 528/2021, que procura incentivar o mercado voluntário de carbono e criar um sistema nacional de registro de emissões.
O projeto, de autoria do deputado Marcelo Ramos (PL-AM), também fornece as diretrizes para um mercado obrigatório e determina que ele seja regulamentado em até cinco anos pelo Ministério da Economia.
A matéria está na Comissão de Meio Ambiente da Câmara aguardando parecer da deputada Carla Zambelli (PSL-SP).