SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Cinco provas disputadas e quatro medalhas. Na sua estreia em Jogos Paralímpicos, o nadador Gabriel Bandeira, 21, tem confirmado as expectativas que foram alimentadas sobre o seu desempenho em Tóquio.
Expectativas altas, mas recentes, já que até o início de 2020 ele nunca havia competido no esporte adaptado.
Bandeira pertence à classe S14 da natação paralímpica, destinada a atletas com deficiência intelectual.
No Japão, ele já foi campeão nos 100 m borboleta, prata nos 200 m livre e nos 200 m medley e bronze com o revezamento 4 x 100 m misto. Terá mais uma prova pela frente, os 100 m costas, com final às 6h03 de quinta-feira (2).
A trajetória do jovem nadador nas piscinas já teve altos e baixos e algumas mudanças de rumo. Em todos esses momentos, ele contou com o apoio da avó, a quem dedicou sua primeira medalha paralímpica. Carmen Bandeira, 57, foi a responsável pela criação de Gabriel desde cedo, em Indaiatuba (interior de São Paulo). Mais tarde, os dois moraram juntos em Belo Horizonte e hoje seguem sob o mesmo teto em Uberlândia.
Atualmente aposentada, a ex-funcionária pública conta que foi criada com muita ênfase na importância da educação e buscou transmitir os mesmos valores para suas filhas (Gabriela, mãe de Gabriel, e Daniela) e netos.
Quando Gabriel demonstrou dificuldades no processo de alfabetização, ela reforçou o ensino dentro de casa. Como os obstáculos voltaram a aparecer de forma mais acentuada na escola posteriormente, o menino foi levado para avaliações psicológica e médica, sem que a deficiência fosse apontada.
Diante da falta de clareza nos diagnósticos, a vida seguiu. A prática esportiva era incentivada, e desde os 11 anos ele conseguiu se destacar na natação em Indaiatuba. Aos 16, os bons resultados proporcionaram um convite do Minas Tênis Clube, referência na formação de nadadores no país.
Quando o adolescente partiu para a capital mineira -Carmen foi mais tarde, após conseguir uma transferência no trabalho-, o treinador Antonio Luiz Cândido chamou a avó para conversar. Cândido comanda uma equipe paradesportiva em Indaiatuba e sugeriu que Gabriel passasse por um teste de QI para saber se tinha deficiência intelectual.
“Falei com ele pra fazer o teste, mas, com 16 anos, ele não quis fazer. Acho que sentiu um pouco de medo em relação aos amigos, o que as pessoas pensariam. Eu disse tudo bem, não vou forçar, não era algo que estava prejudicando a saúde”, afirma Carmen.
O atleta manteve sua trajetória na natação convencional do Minas, chegou a participar de competições nacionais importantes, mas parecia haver uma barreira no desenvolvimento. “Quando tinham muitas orientações passadas ao mesmo tempo, ele se perdia, e o rendimento ficava prejudicado. O deficit de memorização afeta os padrões e rotinas de treinos”, diz a avó.
Em 2019, Cândido voltou a sugerir o teste de QI. Dessa vez, insatisfeito com a sua situação de momento na natação, Gabriel topou fazer o exame, que identificou a deficiência intelectual (valor abaixo de 75).
Aos 19 anos, o atleta entrava em um novo capítulo de sua vida e estava apto a competir no esporte paralímpico, após a validação dos resultados junto ao Comitê Paralímpico Brasileiro.
Com algumas propostas nas mãos, Gabriel optou por defender o Praia Clube, de Uberlândia, onde passou a ser treinado por Alexandre Vieira.
“Ele não sabe explicar muito bem o que sentia antes, mas, quando foi recebido pela equipe paralímpica do Praia, foi muito bem acolhido. São muito amorosos, e daí a ele voltar a evoluir na natação foi algo natural”, relata Carmen. “Atletas que nadaram com ele e ficaram sabendo dessa transição deram 100% de apoio.”
“Eu me senti abraçado pelo esporte paralímpico. Foi tudo muito tranquilo e leve, senti que eu poderia ser eu mesmo. Os técnicos sempre comentaram sobre os meus tempos e quanto eles equivalem no paralímpico. Eu sabia do meu potencial, mas realmente foi tudo muito rápido”, constata o nadador.
Sua estreia em competições adaptadas ocorreu em fevereiro do ano passado, em um evento em Brasília. Conquistou seis medalhas de ouro, com quatro quebras de recordes brasileiros.
Na pausa de competições provocada pela pandemia, o atleta se desenvolveu ainda mais. Em junho de 2021, disputou o Campeonato Europeu, em Portugal, sua primeira competição internacional, e venceu seis provas com recordes continentais.
Como as expectativas eram altas para Tóquio, a família começou a se preparar para que Gabriel entrasse em uma nova fase, com suas medalhas transmitidas pela televisão e um inédito reconhecimento nacional.
Família, amigos, treinadores, psicóloga, consultora de carreira e comunicação passaram a constituir uma rede de apoio importante. Ainda mais quando o nadador precisou ficar em isolamento por vários dias em um quarto de hotel em Hamamatsu, cidade que recebeu a delegação brasileira para aclimatação no Japão no início de agosto.
Dois membros tiveram teste positivo para o coronavírus ao chegarem à cidade, e 52 pessoas precisaram se isolar por serem consideradas contatos próximos dos contaminados.
“Acho que o mais difícil foi trabalhar a resiliência do Bill [apelido de Gabriel] quando a gente chegou a Hamamatsu, que ele ficou sem treinar. O Bill é um cara viciado em água. Mas a gente estava numa pegada tão boa, fez uma preparação tão forte, que a probabilidade de coisas erradas acontecerem existia, mas nada atrapalharia”, afirmou Alexandre em entrevista à Globo.
Para Carmen, esses dias que antecederam a estreia nos Jogos foram os mais difíceis da vida do neto. Mas, apesar de isolado, ele nunca esteve sozinho por causa desse núcleo com o qual manteve contato constantemente.
Para orgulho da avó, a persistência que levou Gabriel a brilhar no esporte foi desenvolvida desde cedo pela importância dada por ela ao ensino.
“Ele podia ser atleta, mas tinha que estudar. Com muita dificuldade, completou o ensino médio. Também fez curso de informática e tem um conhecimento de edição de imagem razoável. A psicóloga disse que eu acertei em estimulá-lo a aprender. Ele vai demorar, mas vai conseguir. O segredo é não desistir. Nem ele nem quem cuida”, afirma.
Ela imagina que o atleta poderá a partir de agora ser visto como uma referência para pessoas com deficiência intelectual, algo que ele também reconhece. “Quero que a natação me ajude a levar mais informações para as pessoas. Acho que ainda pensam muito em limitações, e nós podemos muitas coisas. Tudo, na verdade”, diz Gabriel.
Vibrando a distância em razão da pandemia, ela, que em 2018 se aposentou para acompanhar de perto a carreira do neto, espera estar presente em muitas outras conquistas futuras. “Tenho um acordo com ele de participar de mais quatro Paralimpíadas, para eu poder viajar pelo mundo”, diverte-se Carmen.