SANTOS, SP (FOLHAPRESS) – A atleta Beth Gomes, 56, pensava ter chegado ao fim a relação de quase toda vida com o esporte, em novembro de 2017, quando precisou ser internada às pressas no Hospital São Lucas, em Santos.
Um novo surto de esclerose múltipla, doença autoimune que afeta o cérebro e a medula, descoberta por ela em 1993, reduziu ainda mais a sua mobilidade. Paraplégica e com o lado direito já sensivelmente comprometido pela patologia, viu todo o lado esquerdo do corpo ser afetado desta vez.
“Eu falava para a minha médica: acabou tudo, agora. Vou ter que parar o esporte. O que vou fazer da minha vida?”, conta à Folha.
A resposta da neurologista Rosana Ferreira, com quem possui relação de proximidade familiar, de que ainda era possível seguir mesmo com mais uma limitação no corpo soou como o combustível necessário para ela.
“Ela e depois a minha treinadora [Roseane Farias] me disseram que daríamos um jeito, que com calma encontraríamos os caminhos. Eu fiquei com a mão esquerda, que uso para lançar, em garra. Já tinha a direita assim. A minha performance foi totalmente modificada”, relata.
Conhecida como “Fênix” (a ave que ressurge das cinzas), apelido que ganhou de um dos seus técnicos por sempre conseguir se reinventar, ela chega agora a Tóquio como a mais velha da delegação brasileira de 260 pessoas –164 homens e 96 mulheres– e com números que a credenciam como potencial medalhista na prova de lançamento do disco que acontece às (7h10 de Brasília) desta segunda (30).
Beth foi campeã do Parapan-Americano de Lima-2019, além de quebrar o recorde mundial da modalidade no mesmo ano, no Mundial de Dubai, com a marca de 16,89 m posteriormente superada por ela em 2021, com 16,92m. Ganhou, no fim de 2019, o prêmio de melhor do ano entregue pelo Comitê Paralímpico Brasileiro.
O novo recomeço, palavra que se acostumou a ouvir e viver nos últimos anos, passou por uma reclassificação em 2018, da classe F54 para F52, ambas para atletas sem controle de tronco e com deficiência nos membros superiores.
Foi preciso, segundo ela, “ganhar centímetro a centímetro novamente” para seguir o sonho de continuar no lançamento do disco. No atletismo, ela chegou a competir também na corrida por cadeira de rodas e no arremesso de peso.
“Eu agora só posso encaixar o disco e lançar. A minha treinadora teve que buscar novas técnicas para podermos atingir melhores índices”, explica.
Em 2008, esteve em Pequim, mas como parte de outro projeto: o basquete em cadeira de rodas, primeiro esporte escolhido para recomeçar, três anos após descobrir a doença em 1996.
“Foi o basquete que me inseriu, que me fez ter vontade de viver de novo. Permaneci por muitos anos, até 2010. Eu fiquei dois anos sem saber o que aconteceria comigo. O esporte foi o meu combustível de vida, o meu ar”, conta Beth, que antes de descobrir a doença era atleta de vôlei.
Beth tinha índice para estar na Rio-2016, mas passou por reclassificação internacional, que define o grau de deficiência de cada atleta, meses antes da competição que a tirou da classe F54 para a F55, com menos limitações, impondo um desafio impossível, segundo ela, que acabou não disputando a competição.
O conhecimento da doença, em 1993, aconteceu quando trabalhava como guarda municipal. Ela perdeu o equilíbrio ao tentar pular uma poça d’água, passando a andar com o auxílio de bengalas.
Em um dos surtos, em 2003, ficou tetraplégica e perdeu a visão, problemas que foram regredidos posteriormente. O esporte sempre foi a motivação para seguir.
Durante a pandemia, com sede de continuar no mais alto nível, aparelhou a própria casa com barras, anilhas, medicine ball, suporte para supino, halteres e outros equipamentos do próprio bolso. Contou com a ajuda de sobrinhos e aulas remotas da treinadora enquanto as academias e clubes estavam fechados.
Ela passou por um período de aclimatação no Japão em Hamamatsu. A medalha desejada coroaria uma vida dedicada ao esporte e à vitórias pessoais, mas não é uma obsessão. “Seja qual for a cor da medalha, se vier, não quero é parar com o esporte. O meu combustível é competir, a medalha é só uma consequência””
O sonho maior de Beth Gomes é iniciar um instituto para ajudar crianças, com ou sem deficiência, a poderem ter no esporte a mesma salvação que encontrou para a própria vida.