SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Enquanto as Olimpíadas de Tóquio são marcadas pela pandemia de Covid-19, o grande marco em 1964, quando a capital japonesa sediou os Jogos pela primeira vez, foi a reconstrução do Japão pós-guerra.
O país asiático havia tentado abrigar a edição do evento de 1940, mas só alcançou o objetivo décadas depois, na esteira da derrota na Segunda Guerra. Assim, quando enfim deu boas-vindas a atletas do mundo todo, tentou se mostrar como uma nação em pleno desenvolvimento e com ares de modernidade.
A tarefa de promoção da imagem nipônica ficou a cargo do cineasta Kon Ichikawa, escolhido para dirigir o filme oficial daqueles Jogos. O que ele registrou, porém, não estava nos planos da organização do evento.
Na versão original da obra, com duração de quase três horas, Ichikawa compôs um retrato formado por medalhistas e recordistas que dividem a tela com atletas que nunca chegam ao fim das provas, caem no meio da pista e saem dos locais de competição carregados, em macas.
Em outra característica que chamou a atenção, os cem cinegrafistas envolvidos nas filmagens voltaram suas câmeras para os bastidores dos Jogos, algo pouco visto nas transmissões da TV –essas Olimpíadas, aliás, foram as primeiras a serem televisionadas para o mundo todo.
Assim, enquanto esportistas de arremesso de peso quebram recordes, o que se vê são funcionários que desenterram as bolas do solo. Da mesma maneira, voluntários que ajeitam copos e espumas cheias de água para velozes maratonistas ficam na mira das câmeras em longas passagens.
O Comitê Olímpico Japonês, claro, não gostou do resultado, que apresentou uma crônica bem mais complexa do que a exaltação nacional encomendada. Uma reportagem recente do jornal americano The New York Times lembrou que nacionalistas definiram o longa como um ataque ao patriotismo.
A organização local dos Jogos chegou a fazer uma versão mais curta do filme, mas foi o corte original de Ichikawa que se tornou um marco do cinema e de sua carreira –por “Olimpíada de Tóquio”, ele ganhou um Bafta, o Oscar britânico, outro destaque numa carreira que, antes, já havia sido marcada pelo prêmio do júri de Cannes por “Kagi”. O documentário também foi, por décadas, um recorde de bilheteria no Japão.
Para o historiador e crítico de cinema Peter Cowie, em entrevista à revista New York, “o filme está imbuído de um humanismo que falta à maioria dos documentários ortodoxos”. Não à toa, o também co-produtor da seleção da Criterion de melhores filmes sobre as Olimpíadas incluiu o filme de Ichikawa na lista.
A obra do cineasta, que tem em sua filmografia outros produções sobre a Segunda Guerra, distancia-se do que é visto, por exemplo, nos Jogos de Berlim de 1936 representados em “Olympia”, filme no qual Leni Riefenstahl, que professava os ideais da estética nazista, reforçou a imagem de atletas heroicos.
O registro em formato cinemascope, com imagens panorâmicas, dá conta de chegar à textura da pele dos nadadores e à bochecha de um esportista de tiro antes de ele apertar o gatilho.
Com frequência, o contorno dos movimentos dos atletas se desfaz em composições que evidenciam apenas a abundância de cores, como na luz que incide na água durante a competição de remo.
Logo no começo do longa, o sol em paisagem avermelhada, em referência à bandeira do Japão, é seguido de uma bola de demolição que destrói colunas e edifícios. O que dá lugar às cenas de entulho são jovens atletas entusiasmados, no aeroporto, enquanto o público assiste à chegada da tocha olímpica.
Trata-se de um aceno para a modernidade que coroou a virada de Tóquio em 1964. Em vez do trauma dos bombardeios, são projetos de nomes como Kenzo Tange, referência na arquitetura, que estão lá.
Cowie, o historiador e crítico de cinema, também disse à revista americana que o filme de Ichikawa reflete uma ideia famosa do Barão de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos Modernos –a de que o mais importante na competição não é vencer, mas participar. Em uma edição olímpica sem público, com atletas enlutados, cuja abertura investiu na homenagem aos esportistas que treinaram sozinhos em suas casas durante a pandemia, o norte que o historiador vê na obra do cineasta japonês parece, de novo, oportuno.