SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Ela exibiu sua silhueta pós-gravidez em Pequim” ou “a medalhista de ouro mostrou do que seu corpo é capaz no campeonato”? “A sexy estrela do vôlei” ou “a sensação do vôlei queniano”? E que tal “ela é o próximo Michael Phelps” vs. “ela é uma atleta extraordinária”?
Por décadas, parecia óbvio para a mídia esportiva que as atletas mulheres poderiam ser medidas a partir de quão sexy eram –em geral, sob a ótica de um editor homem. O espaço dedicado a equipes femininas já era exíguo e, quando existia, era ocupado mais por estética do que por desempenho atlético.
Em mea culpa sobre como lidou até aqui com o tema, o COI (Comitê Olímpico Internacional) convocou os detentores dos direitos de transmissão dos Jogos de Tóquio a dar tratamento isonômico para homens e mulheres. Os exemplos que abrem este texto vêm de um guia que o comitê divulgou com abordagens indevidas seguidas de reformulações apropriadas a um noticiário olímpico atento à igualdade de gênero.
As diretrizes sugerem ainda não se concentrar “desnecessariamente em aparência, roupas ou partes íntimas do corpo”. “O esporte tem o poder de mudar a forma como as mulheres e as minorias são vistas e como elas se veem. Como líderes, comunicadores, criadores de conteúdo e meios de comunicação, damos o tom de como os desportistas são retratados”, diz o documento.
O chefe de transmissão das Olimpíadas de Tóquio quer, ainda, banir imagens que sexualizem as esportistas, segundo a agência de notícias Associated Press. Eis o novo lema: “Sport appeal, not sex appeal”, algo como “o apelo do esporte, não o apelo sexual”. A cartilha do COI usa dados de 2018 da Unesco para mostrar o pendor sexista no meio, como o fato de só 4% do que a mídia esportiva oferta ser dedicado a atletas femininas, e 12% desse material ser produzido por mulheres.
Vai outro sintoma da vala entre gêneros? A revista Forbes todo ano publica a lista dos cem atletas mais bem pagos do mundo. Em 2021, apenas duas mulheres estavam lá, ambas tenistas: a japonesa Naomi Osaka (12º, com US$ 60 milhões) e a americana Serena Williams (28º, US$ 41,5 milhões).
A exploração do corpo das competidoras ganhou relevo após um motim do time norueguês de handebol de praia, que preferiu usar shorts a biquínis num campeonato europeu –e foi multado em 1.500 euros (R$ 9.200) pela escolha. Já a ginasta alemã Sarah Voss abandonou o maiô cavado num recente torneio. Apareceu com um macacão de corpo inteiro para se posicionar contra a “sexualização na ginástica”, figurino que a equipe de seu país decidiu levar a Tóquio.
Questões que nem sequer eram cogitadas não tem tanto tempo assim. Veja o que aconteceu com a jogadora de vôlei de praia Sandra Pires, 48, ao levar o ouro em Atlanta-1996 na dupla com Jacqueline Silva. Elas tinham um uniforme próprio para o pódio caso ganhassem, com calça e moletom.
A vitória veio, mas as duas duplas brasileiras medalhistas na ocasião, com Adriana Samuel e Mônica Rodrigues garantindo a prata, foram instruídas a aceitar o prêmio de biquíni.
“Todo mundo sobe no pódio de agasalho, não com a roupa que jogou, toda suja de areia”, disse Sandra à reportagem. Ela conta que o quarteto só compreendeu a conotação do pedido hoje, 25 anos depois. “A gente não percebeu que aquilo estava do lado sexual, que a sexualização passou por cima do espírito olímpico.”
Foi depois desse ouro, inclusive, que Sandra Pires e as atletas mulheres exigiram o mesmo pagamento dos homens, que não levaram medalha para o Brasil no vôlei de praia em 1996. Para a ex-jogadora, os responsáveis por competições “sempre pensam no que vai ser melhor para venda, para o marketing”. Mas os tempos são outros. “Só agora as coisas vêm mudando. O vôlei de praia sempre teve que lidar com isso, com expor mais o corpo. Os caras não prestam atenção no jogo. Porra, presta atenção no jogo.”
O COI não define as regras de vestimenta nos esportes, que ficam a cargo das federações das modalidades, mas é o comitê que comanda o Serviço Olímpico de Transmissão e, portanto, pode mudar como a imagem dos atletas é mostrada para o público global.
Também do vôlei de praia, Carol Solberg, 33, diz que vestir biquíni nos jogos não é um desconforto. “Mas tem dia que você pode estar menstruada e querer jogar de shorts, e você tem que ficar explicando que é por isso. Inacreditável. O atleta tem que estar preocupado com a performance, não com o biquíni”, diz.
Quando pediu para usar calças durante partidas em que o tempo estava mais fechado, ouviu de organizadores que “não estava frio o suficiente”. “Para autorizarem jogar de calça tem que estar muito frio, porque está ligado à audiência da transmissão. A gente estar de biquíni na televisão é mais um atrativo. Muito triste um esporte estar associado ao homem que vai ligar [a TV] para ver uma mulher de biquíni.”
Solberg relembra também casos de fotógrafos que fizeram takes inadequados dela e de colegas em competição. Um deles, conta, fez uma série de fotos primeiro focando sua bunda e, depois, dela chupando um saquinho de gel de carboidrato, criando uma sequência de conotação sexual.
Num outro evento, um fotógrafo contratado pelo torneio publicou uma foto em que as vulvas de jogadoras rivais estavam marcadas no biquíni branco. A imagem circulou como meme na internet e na competição.
Revistas e jornais também têm predileção pelo enfoque estético do corpo das atletas, o que só há pouco vem sendo questionado. Leitores criticaram, por exemplo, a edição de 1º de junho de 2013 da Folha de S.Paulo, quando o jornal publicou uma foto de Maria Sharapova com pernas de fora e legendou: “Quase perfeita: tenista supera a chuva, mas não a celulite, e arrasa rival em Roland Garros”.
“Achei lamentável o comentário sobre a celulite”, escreveu um leitor. “Então quer dizer que não basta o desempenho esplêndido? Ela só será ‘perfeita’ se for linda, não tiver celulite, estiver impecavelmente depilada, com o penteado alinhado, a sobrancelha e as unhas feitas e tiver um corpo escultural?”
Outro exemplo vindo da imprensa, em 2016, nos Jogos do Rio, um experiente comentarista esportivo da BBC parabenizou o britânico Andy Murray por ser a primeira pessoa a conquistar dois ouros olímpicos no tênis. Acontece que as irmãs Serena e Venus Williams já tinham, cada uma, quatro dessas medalhas.
Para Elizabeth Daniels, professora de psicologia na Universidade do Colorado e pesquisadora do tratamento sexualizado concedido às esportistas, há uma percepção histórica de que esporte é “coisa de macho” e que para praticá-lo a mulher deveria acenar a algo que remeta à feminilidade. Daí a ideia de que uma atleta agrega mais valor de mercado pela beleza do que pela destreza esportiva.
A “boa forma” de atletas, conceito lapidado por publicações como a icônica Sports Illustrated, pode ser nociva para gerações de mulheres que crescem com padrões inalcançáveis, segundo Daniels.
Sua pesquisa mostrou, paralelamente, que tratamentos midiáticos focados no desempenho das atletas inspiram “mulheres comuns” a correr atrás de uma vida mais saudável. Sexy? Que tal fortes?