A temporada 2022 sinaliza que o mundo árabe vai estar em evidência no cenário do futebol. Além do Mundial de Clubes a ser realizado no início deste mês e que vai contar com a presença do Palmeiras, o Oriente Médio ganha notoriedade também por conta da realização da Copa do Mundo, que terá o Catar como país-sede. Abastecida pelo dinheiro do petróleo, a região sempre teve um perfil atraente e também excêntrico para jogadores e treinadores. As curiosidades são muitas. Vão desde leões que passeavam tranquilamente pelas dependências dos palácios dos xeques à obrigatoriedade de usar barba e bigode a pedido dos patrões a fim de passar mais autoridade à beira do campo.
Cercado de peculiaridades, o histórico de investimentos no futebol por parte dos xeques e príncipes se arrasta ao longo dos tempos. Um exemplo recente foi a aquisição do Newcastle pelo um fundo de investimentos soberano da Arábia Saudita. O valor da transação beirou a casa dos R$ 2,2 bilhões.
Em meio a um universo envolvendo costumes e tradições tão diferentes, o Estadão ouviu profissionais que migraram para a região para contar um pouco desse ambiente. Um dos desbravadores dessa empreitada foi o ex-ponta-esquerda Pepe. Após um bom trabalho à frente da Inter de Limeira, ele partiu para o oriente em busca de uma internacionalização na carreira de treinador.
Foi assim que o Al-Sadd, do Catar, entrou na sua vida profissional em 1983. “Conversei em casa e fomos de mala e cuia. A família chegou mais tarde por causa do calendário escolar e eu preparei o terreno. Ao chegar, tivemos que nos adaptar. Minhas filhas e a esposa não usavam a burka (veste feminina que cobre todo o corpo além do rosto da mulher). Apesar de liberadas do traje tradicional, elas não podiam usar shorts. Só saias compridas e nada de decote. Não podia vestir nada que mostrasse as formas da mulher.”
Um outro pedido, logo acatado pelo técnico brasileiro, foi a mudança no visual. “Eles alegavam que com barba e bigode, eu teria mais respeito junto aos jogadores. Era um sinal de masculinidade. Não vi problemas, mas a Lélia, minha esposa, reclamou demais. Tanto é que, quando voltamos ao Brasil, rapidinho tirei”, disse Pepe em entrevista ao Estadão.
Convites para assistir corridas de camelos fizeram parte da rotina de Pepe. Mas foi no mundo árabe que ele doutrinou aquele que viria a ser um dos maiores técnicos da atualidade: Pep Guardiola.
“Quando me perguntaram da possibilidade de contratá-lo, aceitei na hora. E o Guardiola se mostrou um atleta já voltado para questões de estratégia. Adorava conversar sobre o futebol brasileiro perguntava muito sobre o Santos dos anos 60. Como era volante, tinha curiosidade em saber muito do Zito e do Clodoaldo. Era meu capitão. Agora, uma curiosidade é que ele não gostava de disputar as bolas de cabeça. Dizia: minha cabeça é feita apenas para pensar.”
Outro desbravador que também conversou com a reportagem foi Sebastião Lazaroni, técnico da seleção brasileira na Copa do Mundo de 90, na Itália. Sua primeira passagem aconteceu na segunda metade da década de 80. E o cenário lá era bem diferente.
“Em muitos campos havia só uma cerca separando os jogadores da torcida. Você tinha que subir no carro para poder ver o jogo. Nada de estádio como vemos hoje. O piso, em sua maioria, era de terra batida. Poucos campos eram gramados”, afirmou o treinador que trabalhou em países como Arábia Saudita, Kuwait e ainda no Catar.
Muito desse desenvolvimento no Oriente Médio ele credita a nomes como Didi (ex-Botafogo e seleção brasileira), Zagallo, Rubens Minelli, Evaristo de Macedo e Carlos Alberto Parreira. “As dificuldades eram grandes. Muitos jogadores locais trabalhavam o dia inteiro para depois ir ao treino. Tínhamos que ter uma postura de transparência e respeito por eles.”
Mas foi no Kuwait, dirigindo o Al-Arabi, que ele viveu uma fase mais tensa da carreira. “Era o período pós-guerra do Kuwait com o Iraque. De reconstrução. Muitos prédios demolidos. Você estava treinando e de repente helicópteros desciam nos campos. Era complicado e tínhamos que interromper e às vezes até encerrar os trabalhos”, comentou.
IRMÃO DE ZICO PEITOU FILHO DE SADDAM – Edu Coimbra, irmão de Zico, era um treinador em início de carreira em 1985 quando aceitou o desafio de comandar o Al Rasheed, time de Uday Hussein, filho do ditador iraquiano Saddam Hussein.
Com um perfil carrancudo e um temperamento bipolar, Uday tinha quase dois metros de altura e carregava fama de punir severamente os jogadores que o desagradassem em campo. Apesar do tratamento cordial com o técnico brasileiro, a política de boa vizinhança entre as duas partes foi por água abaixo numa partida armada pelo dirigente iraquiano na tentativa de aumentar o prestígio da sua equipe na cidade.
O fim do campeonato local terminou com o Al-Rasheed em segundo lugar. Uday armou uma partida extra contra o campeão legítimo do torneio para colocar novamente o título em disputa. O local do embate, claro, foi no estádio da sua equipe.
“Ele (Uday) chegou com uma comitiva de mais de 30 carros e um batalhão de seguranças. Vencíamos a partida por 1 a 0 quando a veio o pedido de cima para tirar o nosso camisa dez. Não acatei a ordem e, para a minha sorte, o tal jogador aumentou o placar para 2 a 0. Foi quando um dos nossos atletas levou o cartão vermelho e o Uday entrou em cena para tirar o time de campo”, afirmou Edu ao Estadão.
O irmão de Zico bateu de frente com o patrão e o jogo foi até o fim. “Aquilo não estava certo. Ele ficou com medo de o adversário virar o jogo e brigamos feio. Só que eu não sabia a forma de agir do Uday. Quase que eu me ferro. Ele costumava raspar a cabeça dos jogadores e fazer outras coisas. Dizem até que tinha um paredão onde os atletas eram expostos a agressões. Mas isso só ouvi falar.”
Segundo Edu, a partir daquele dia, ele nunca mais foi recebido pelo príncipe iraquiano. De treinador que classificou a seleção iraquiana para a Copa de 86, ele foi rebaixado a auxiliar. “Não aceitei e pedi demissão.”
LEÃO NO QUINTAL – Silas, ex-meia do São Paulo nos anos 80, também se aventurou no mundo árabe como treinador entre 2011 e 2012. Ele dirigiu o Al-Arabi e depois o Al-Gharafa, ambos do Catar. Ele conta, que numa ocasião, recebeu um recado do xeque para se apresentar no palácio às 7 horas da manhã.
“Deixei os filhos na escola e fui até lá um pouco apreensivo. Não é comum uma reunião nesse horário. Ao entrar, cercado por vários seguranças, tinha um leão enorme andando tranquilamente numa jaula no quintal. Ele não parava quieto. A gente não está acostumado com isso”, contou Silas que atualmente é comentarista dos canais ESPN.
Entre as excentricidades, ele destacou também a idolatria que as lideranças políticas têm pelos profissionais de futebol. No comando do Al-Gharafa, ele venceu a Qatar Emir Cup em 2012 e dois dos brasileiros que estavam no seu time foram decisivos para a conquista.
“Após empate no tempo normal em 0 a 0 contra o Al-Sadd, fomos para os pênaltis. O Diego Tardelli e o Zé Roberto converteram as cobranças finais e ficamos com o título. No dia seguinte, todo o plantel teve direito a um banquete no Palácio Imperial.”
DE OLHO NO PALMEIRAS – O Mundial de Clubes que terá o Palmeiras como candidato também esteve na ordem de conversa. Silas disse que o time paulista chega mais fortalecido para buscar o título este ano. “O Abel Ferreira está com uma mentalidade mais europeia. A equipe está encaixada e a frustração pelo quarto lugar no ano passado parece superada. Vencer a Libertadores em cima de um time forte como o Flamengo dá moral para qualquer time;”
Já Sebastião Lazaroni acha que a força do conjunto precisa prevalecer para o time brasileiro ter mais chances de superar uma provável final contra o Chelsea. “No futebol, o imponderável também existe. São 90 minutos. Não vejo um destaque individual no Palmeiras, mas taticamente, o grupo evoluiu. Uma boa marcação e uma transição rápida pode ser decisiva. O importante é manter o foco”.
O calor foi o principal problema apontado pelo ex-ponta Pepe. “No mundo ideal, o correto seria chegar com 20 dias de antecedência para se aclimatar. O Palmeiras precisa estar compacto para não dar brechas e evitar a correria desnecessária. O fôlego pode ser o diferencial no final da partida.”