Era comum ouvir do jornalista Milton Peruzzi, que nos anos finais de sua carreira apresentou um famoso programa esportivo, um elogio ao calendário do futebol italiano. “Lá, você sabe os jogos que serão disputados daqui a cinco anos”, dizia, criticando a distribuição das partidas no Brasil. Corriam os anos 1980 e, desde então, também em função de críticas como a de Peruzzi, o calendário do futebol brasileiro passou por modificações, evoluiu a ponto de serem implantados os pontos corridos, em 2003, por exemplo. Estádios foram reformulados e refeitos, o gramado melhorou e os apetrechos, como camisa e bola, trazem em suas combinações o que há de mais moderno no mundo. Pensava-se que, com isso, tudo estaria resolvido.
Mas, com o acúmulo de competições (Copa Libertadores, Copa Sul-Americana, Copa do Brasil, estaduais e regionais), o próprio calendário do Brasileirão passou a ser constantemente modificado e os clubes atualmente chegam a fazer cerca de 80 jogos por ano, muito mais do que no passado – média de uma partida a cada quatro dias.
Só em 2022, por exemplo, pressionado também pela Copa do Mundo do Catar, entre novembro e dezembro, o calendário do futebol brasileiro tem sofrido ainda mais com as costumeiras modificações. Já foram desmembradas cinco rodadas do Brasileiro, entre a 6ª e a 10ª. Assim, tem sido comum o torcedor ver, durante a semana, jogos de diferentes competições, envolvendo clubes brasileiros. Não se sabe direito o que está valendo em campo.
Em uma terça-feira, dia 3, Atlético-MG e América se enfrentaram pela Libertadores e, no sábado seguinte, pelo Brasileirão. O Flamengo, no dia 1º de maio, entrou em campo no domingo, tradicional dia do futebol no Campeonato Brasileiro, para disputar um jogo pela Copa do Brasil, contra o Altos (PI).
Essa maratona tem feito os técnicos se desdobrarem para escalar os times, para evitar o desgaste excessivo dos jogadores. Clubes como Corinthians, São Paulo e Flamengo, em maio, jogarão um total de nove partidas, quase uma a cada três dias, uma média considerada muito alta dentro para o planejamento de uma equipe.
Tal situação tem deixado chocados os técnicos estrangeiros que trabalham no Brasil. Menos acostumados a essas intensas sequências de jogos do que os brasileiros, eles parecem se sentir mais à vontade para condenarem esse problema. Ainda mais quando adquirem moral por terem se tornado vencedores em suas equipes, como o português Abel Ferreira, do Palmeiras.
“Eu já disse que não temos tempo para treinar, não temos tempo para recuperar. Vou ter de começar a ser mais curto nas conferências de imprensa. Falo seis vezes por semana: duas em Goiás, duas com o Flamengo e agora estou a falar duas… Aqui é insano para os jogadores, para os treinadores”, disse, após a vitória sobre o Corinthians, no último dia 24 de abril.
Os clubes, no entanto, são os responsáveis por tal situação, segundo o consultor Marco Aurélio Cunha, que, entre outros cargos de coordenação no futebol, foi por oito anos diretor-executivo superintendente do São Paulo. Ele também trabalhou na CBF, tendo sido, entre 2015 e 2020, coordenador de futebol feminino. Neste momento, ele tem prestado, de maneira informal, assessoria para clubes que pensam em se transformar em SAF (Sociedades Anônimas do Futebol).
“Quem faz o calendário e quer competir são os clubes. Os clubes querem jogar porque as competições oferecem premiações. Há a questão política. Eles querem arrecadar. A situação parece igual à daquele cara que vai a todas as festas e, no dia seguinte, vai trabalhar e diz que está cansado”.
LIMITE DE JOGOS
Mas não é simples para os clubes deixarem de participar das competições. A CBF e a Conmebol multam, suspendem e rebaixam aqueles que desistem de disputar um campeonato por elas organizado. Até mesmo a não participação nos estaduais gera punição por parte das federações. Então, não há essa prerrogativa de não entrar em campo.
Procuradas pelo Estadão, a CBF e a Conmebol não deram retorno com respostas sobre os problemas do calendário. Sabem, no entanto, que há um desequilíbrio grande nas divisões. Até pouco tempo atrás, as séries menores não tinham calendário, jogavam pouco e isso trazia problemas financeiros para os clubes. Ocorre que os clubes nas principais divisões pecam pelo excesso.
Marco Aurélio não vê alternativas em relação ao atual estágio do calendário brasileiro. O número de jogos não tem como diminuir neste cenário, segundo ele. Não se abre mão de nada, nem mesmo dos Estaduais, os mais “fracos” dos concorrentes. E o fim dos Estaduais não seria a solução também. Ele sugere algo novo. A diminuição do número de jogos para os atletas, em vez de para os clubes.
“Acho que os Estaduais são importantes porque dão ânimo para clubes que não têm repercussão nacional manterem a hegemonia regional. Está difícil diminuir o número de jogos. Não vejo problema no clube disputar tantos jogos, só que a salvação para isso seria que CBF e, principalmente, a Fifa estipulassem um número mínimo ou máximo de jogos por jogador, isso é absolutamente saudável, excluindo partidas da seleção nacional”, defende.
Para ele, isso facilitaria o trabalho do treinador, que não seria tão pressionado a sempre escalar os jogadores considerados titulares. Pelo limite de jogos, ele seria obrigado a abrir mão deste ou daquele atleta em determinada partida para atender a meta estipulada.
“Isso daria uma chance maior para a base. E o técnico, nos jogos, vai colocar o jogador inteiro e tirar inteiro, o jogador vai ter mais possibilidades de recuperação e preparo para atuar em uma temporada de 70 jogos, no máximo, por exemplo. Quem jogaria sempre seria a camisa, os jogadores não poderiam atuar em todas as partidas. O Palmeiras, de certa maneira, já está fazendo isso. Formalizar essa situação poderia ser a solução”, ressalta.
LOGÍSTICA DETALHADA
No atual contexto, as mudanças no calendário ainda atrapalham a logística dos clubes, por mais desenvolvida que ela seja. Para o supervisor de logística do Palmeiras, Leonardo Piffer, essas alterações permanentes são o maior problema dentro do planejamento.
“Os voos fretados têm ajudado bastante, pois, dependendo da cidade, conseguimos retornar a São Paulo diretamente após o jogo, facilitando o trabalho do Núcleo de Saúde e Performance na recuperação dos atletas para o próximo compromisso. Procuramos sempre voos fretados com as empresas mais responsáveis do mercado, que forneçam, por exemplo, alimentação a bordo de acordo com a orientação da nutricionista. Mas um obstáculo que precisamos superar frequentemente são as mudanças nas tabelas de jogos”, diz.
Uma situação dramática lembrada por ele foi na disputa do Mundial de Clubes de 2020, quando o Palmeiras não teve boa performance, após um ano desgastante, quando, dias antes, havia conquistado a Libertadores. No Mundial, o clube paulista foi derrotado nas semifinais pelo Tigres e, na disputa da terceira colocação, perdeu por 3 a 2, nos pênaltis, para o Al Ahly.
“Foi uma situação difícil porque jogamos a final da Libertadores contra o Santos em 30 de janeiro e três dias depois embarcamos para o Catar. Não houve tempo hábil para que a delegação se adaptasse ao fuso e pudesse fazer a melhor preparação física e mental”, diz.
Piffer afirma, no entanto, que a experiência serviu de aprendizado para o ano seguinte, quando o Palmeiras disputou novamente o Mundial, este nos Emirados Árabes Unidos, tendo melhor performance e terminando como vice-campeão, após vencer o mesmo Al Ahly nas semifinais. “Com a experiência que adquirimos e um tempo maior para planejarmos a logística, chegamos em melhores condições para o Mundial de 2021”, destaca.
Para reduzir a influência negativa do excesso de jogos, o trabalho de logística tem sido um campeonato à parte. O clube que tem melhor desempenho neste quesito já sai com vantagem. Desempenho e dinheiro.
“Damos preferência a hotéis de quatro e cinco estrelas e que fiquem próximos aos aeroportos, ao estádio e, se necessário, ao campo de treinamento. Fechamos andares completos de quartos e salões privativos para refeições e preleção. Para o transporte, o clube sempre contrata um receptivo local que fica responsável pelo aluguel de ônibus, vans, carros e caminhão para o transporte de material. As reservas são feitas assim que as tabelas dos torneios são divulgadas”, explica.
OUTRAS DIVISÕES
Marco Aurélio lembra, no entanto, que as dificuldades dos clubes que disputam as Séries B, C e D são ainda maiores. Muitas vezes, eles jogam em cidades que não têm aeroporto. A viagem é de ônibus. Os clubes da Série A também têm esse problema quando atuam em cidades em que o aeroporto só tenha um voo diário para determinado destino. Perde-se tempo de recuperação, de descanso e de treino.
“Já vi jogador ter de parar o ônibus para vomitar por causa dos solavancos e das curvas na estrada. Descemos em um aeroporto sucateado no Sul do Brasil e fomos para uma cidade maior de ônibus. Essa rotina é comum para clubes que disputam torneios em que a logística não favorece, em cidades com poucos voos ou hotéis”, observa. De tempos para cá, alguns clubes estão tirando da logística o retorno à base, de modo a viajar de uma praça fora de casa para outra diretamente.
Sem a mesma infraestrutura dos clubes considerados grandes, agremiações como o Santo André, que disputa a Série D do Campeonato Brasileiro, por exemplo, encontram muitas dificuldades para o transporte em meio às dimensões continentais do Brasil.
“Jogamos em um sábado em casa (no Estado de São Paulo) e na terça-feira em Belém (no Pará), para depois jogar durante a mesma semana no Paraná. Veja a logística que tivemos de fazer. Isso não envolve só as viagens, mas afeta os treinos e a recuperação dos atletas. Acho que o calendário deveria trazer um espaçamento maior entre os jogos”, diz Gabriel Limeira, auxiliar técnico do Santo André e um dos que elaboram a logística da equipe. De São Paulo a Belém tem 2.658 km. De estrada, dá 38 horas.
O diretor de futebol do Santo André, Juraci Catarino, lembra que, apesar das viagens longas de ônibus, o maior obstáculo para os clubes da Série D é quando eles não se classificam para as fases finais. “Aí o campeonato termina em julho e os clubes ficam o restante do ano sem disputar competições”, observa. Catarino coloca o dedo em outra ferida. A bagunça do calendário não diz respeito somente à quantidade excessiva de jogos, mas a falta deles para alguns times.
Neste sentido, Catarino considera que uma eventual liga formada por clubes da Série A e da Série B deveria levar em conta os interesses de times de divisões inferiores. “Acho interessante a criação da Liga, mas os clubes das Séries C e D também deveriam participar e serem ouvidos. Da forma que está sendo estruturada, me parece um pouco elitizada”, critica.
Sabe-se que a CBF promete ajustar o calendário do futebol há anos. Um outro problema é continuar com as competições durante partidas da seleção brasileira. Os clubes ficam uma fera em ter de ceder seus jogadores. Os treinadores, para não prejudicar os times, por vezes, não convocam como gostariam. A CBF atualmente é refém do calendário da Conmebol (Confederação Sul-Americana de Futebol) e se vê obrigada a ajustar as partidas no futebol brasileiro a reboque do que acontece no calendário sul-americano.