O escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah preparava-se para tomar seu chá no final da manhã do dia 7 de outubro quando passou por 10 emocionantes minutos ao receber um telefonema. Do outro lado da linha, um rapaz comunicava calmamente que ele acabara de ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Desconfiado de que era alvo de um trote, Gurnah estendeu a conversa até se certificar da veracidade da informação. Nisso, consumiu 8 minutos e os dois restantes foram para esperar o anúncio oficial feito pela Academia Sueca.
O mesmo rapaz que conversara com o escritor explicou que Gurnah fora escolhido por conta de sua obra “de penetração intransigente e compassiva dos efeitos do colonialismo e do destino do refugiado no abismo entre culturas e continentes”. Ele se tornou o primeiro laureado negro desde Toni Morrison, em 1993. A questão do colonialismo e dos refugiados é o principal tema de seus livros, como Sobrevidas, que acaba de ganhar edição nacional pela Companhia das Letras.
Ambientado no início do século passado, quando colonizadores avançam violentamente pela África, dizimando povos e impondo regras e costumes. Com uma escrita precisa, recheada de informações culturais locais, Gurnah revela a tentativa dos habitantes locais de manter uma ainda que frágil rotina, diante da ameaça constante de que novos combates arrasem a vida de todos mais uma vez. É uma história multigeracional, com muitos personagens vivendo sob as mesmas duras circunstâncias do colonialismo, guerra, perda e privação. No entanto, cada um é único, com diferentes perspectivas, ações e reações a essas circunstâncias.
Gurnah nasceu em 1948, na atual Zanzibar, na costa da Tanzânia. Em 1964, por causa da perseguição a cidadãos árabes durante a Revolução de Zanzibar, refugiou-se no Reino Unido, onde vive atualmente e foi professor na Universidade de Kent até sua aposentadoria. Foi da Inglaterra que ele conversou com o Estadão por Zoom, na manhã desta quarta-feira, 30.
Como foi alternar a descrição de momentos dramáticos com outros mais leves?
Acredito que assim é nossa vida, nossa rotina, marcada por altos e baixos. E meu interesse não era escrever especificamente sobre a guerra ou a tristeza do colonialismo, mas sobre o contexto em que a guerra e o colonialismo aconteceram. E, nesse caso, as pessoas e suas vivências têm prioridade, pois me interessa mostrar como aqueles que são feridos pela guerra e pela própria vida lidam com essas circunstâncias que, muitas vezes, permitem que as pessoas mostrem seu potencial de gentileza.
É difícil descrever os momentos difíceis?
São fatos com os quais convivo há muitos anos, histórias que ouvi quando crescia e que me permitiram entender a experiência da guerra. Sempre estive cercado por pessoas que passaram por esses momentos e que falavam sobre eles. Ouvi até lembranças sobre a Primeira Guerra Mundial. Minha tarefa foi a de organizar essas histórias, o que consegui com a tarefa acadêmica. Descobri que, embora esse período histórico em particular não esteja na imaginação popular, há muito trabalho de pesquisa sobre ele e ler esse trabalho também foi útil.
Como os fatos podem ser ou não ignorados, a ficção pode humanizar os eventos que descreve?
Uma das qualidades da ficção é permitir o preenchimento do que não é conhecido nos fatos, o que humaniza os eventos descritos. Fatos podem ser levados em conta ou ignorados. Mas você não pode ignorar a ficção porque, se funcionar, vai fundo. Veja um exemplo: as atrocidades cometidas durante uma guerra – muitas vezes os motivos que levam a isso são obscuros, mas, pela ficção, é possível oferecer possibilidades, pois nem sempre são provocadas por um simples desejo cruel, mas por uma necessidade de a pessoa testar a si mesma até onde consegue chegar.
Sobre o título do livro, Sobrevidas (Afterlives, em inglês), seria uma referência à maneira como as pessoas recuperam suas vidas após um trauma?
Sim, exatamente isso, é sobre como as pessoas que passam por inúmeras dificuldades ao longo de sua trajetória encontram novas formas de vida. Normalmente o título de um livro me aparece de repente – às vezes, a partir da união de duas palavras, por exemplo. Confesso que não é uma grande preocupação para mim.
Qual é a importância das narrativas históricas?
É uma das virtudes da literatura permitir ao escritor visitar qualquer lugar em qualquer tempo. É um caminho também para se humanizar determinados eventos históricos, aproximando a realidade das pessoas. Escrever sobre um momento histórico, às vezes, pode intensificar nossa compreensão de um episódio ou de uma época que conhecemos em linhas gerais ou como um simples relato factual. Para mim, o período em que uma história se passa realmente não é tão importante, pois, passado ou presente, o que interessa é a forma como é narrada.
Como escritor, o senhor acredita que o ativismo é importante?
Sim, desde que o termo não seja levado ao pé da letra. Quando a narrativa é utilizada para se corrigir algo errado, algo injusto, não vejo problema. Mas, importante: escritor não é juiz, apenas um escritor. Busco sempre, ao escrever, atingir minha plenitude, mas não tenho intenção de dizer o que os outros devem fazer, mas mostrar o que estou vendo e, a partir daí, estimular as pessoas a tomarem suas atitudes.
Em recentes entrevistas, o senhor fez referência à “miséria” da cultura europeia em relação à recusa dos refugiados. O senhor nasceu na África e hoje vive na Inglaterra. De alguma forma, essa tensão se reflete em seus personagens?
Escrevo porque busco retratar, por meio da literatura, o que vivi e ouvi.
Antigamente, as migrações saíam da Europa em busca de outras terras como Austrália, África, América. Hoje, a Europa é o local visado, algo que, em parte, se aproxima da minha experiência, pois milhões de pessoas hoje não vivem em sua terra natal. Ambos os lugares – o ausente e o atual – exibem uma vitalidade própria. Como literatura, é um assunto inspirador, mas há o lado trágico daqueles que se desprenderam de sua terra, de seus entes, de suas memórias, enfim.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.