Vira e mexe, o cuscuz paulista se torna alvo das redes sociais. O motivo? Pessoas, principalmente de fora do estado de São Paulo, não entendem o sucesso que o prato faz em terras paulistanas. As acusações vão desde que “é um apanhado de ingredientes que sobraram” até que ele é uma versão “pouco requintada da pizza portuguesa”. Mas, independente disso, o prato continua presente em cardápios e no gosto das pessoas.
Em restaurantes como o Bar da Dona Onça ou o La Cura, o cuscuz continua batendo ponto no cardápio em versões distintas — afinal, ainda que tenha a essência definida, a execução pode variar bastante de um chef para outro.
“É uma comida de raiz muito caipira. Já o cuscuz de pescado remete ao nosso litoral, e a cultura da mandioca fala também sobre as nuances indígenas. Ou seja, o cuscuz paulista é sobre São Paulo e esse acolhimento como uma cidade de imigrações e culturas distintas”, contextualiza a chef Janaína Rueda, nome por trás do Dona Onça e amante do cuscuz.
História do cuscuz paulista
Todo prato com cuscuz brasileiro, independente se de São Paulo ou do nordeste, conta com um mesmo berço: um prato africano, também chamado de kuz-kuz ou alcuzcus, e que hoje é conhecido popularmente no Brasil como cuscuz marroquino. Com origem no norte da África, esse prato foi levado para Portugal durante a invasão árabe na península ibérica e, segundo Câmara Cascudo, chegou na Capitania de São Vicente já no primeiro século de colonização.
Ganhou ainda mais força durante o século 18, quando mulheres escravizadas preparavam a iguaria com o peixe bagre, abundante nos rios da região do Vale do Parnaíba, ou ainda com a sardinha, consumido por famílias ricas da capital, mostrando a versatilidade do prato.
“Logo o cuscuz começa a ser preparado com sêmola de milho, que os índios já conheciam e utilizavam”, contextualiza Carlos Alberto Dória, sociólogo e pesquisador das raízes da gastronomia brasileira. “Na chegada ao Brasil e conforme o prato se popularizou em São Paulo, começaram a usar a versão misturada com carnes e legumes, ao invés daquela que era servida ao lado, como arroz. Era uma versão muito mais funcional para os bandeirantes e para aqueles outros que vão ingressar no sertão do País em busca de outras riquezas”.
Ao longo do tempo, Dória ressalta, o cuscuz paulista também foi passando por transformações. A farinha biju, mais artesanal, começou a perder espaço para o chamado flocão, menos tradicional. A principal mudança, porém, aconteceu no preparo.
“Uma característica importante do cuscuz paulista é ele ser preparado no vapor. Mas não se faz mais isso. No século 20, generalizou-se um cuscuz feito em uma panela e depois enformado em uma forma de bolo, como se fosse um pudim salgado, que você corta uma fatia e serve no prato”, explica Carlos Dória. “Esse cuscuz é muito popular, muito amplo. Se come em casa, bares, restaurantes. Essa datação, essa facilitação na forma de preparo, assim, ganhou o público. Ao abandonar o vapor, ele se estabilizou de vez no gosto popular”.
Cuscuz popular
Questionados, os chefs que servem o prato em seus cardápios não pensam duas vezes e acreditam que o cuscuz ainda tem um longo caminho a percorrer. “Não só existe espaço na gastronomia de São Paulo como eu acabo levando essa e outras técnicas brasileiras para outros estados e países”, conta Janaína Rueda, questionada sobre o futuro do prato. “Vou para a Croácia em maio e já estou perguntando quais são as farinhas que existem lá para talvez preparar lá, com a minha técnica de cuscuz de panela e algo que seja parecido com a farinha de mandioca ou de milho, um cuscuz e contar a história desse prato”.
Se há dúvidas sobre o quão popular é o cuscuz paulista, uma boa opção é perguntar para Malu Zacarias, dona do Cuscuz da Malu. Autodenominada “cuscuzeira por paixão”, ela chegou a vender 600 quilos de cuscuz no último Natal e 300 quilos na última Páscoa. “Ele tem feito parte de muitos momentos”, contextualiza Malu, que oferece cuscuzes de camarão, sardinha, o famoso x-tudo, bacalhau e, um grande sucesso, feito de carne de siri.
Sobre as polêmicas envolvendo o cuscuz, todos os entrevistados respondem em uníssono sobre isso: nada vai tirar o brilho do cuscuz. “Isso é bairrismo, é regionalismo. Não tem importância alguma para a gastronomia. É bobagem”, responde, sem muita paciência para entrar no mérito desse cancelamento virtual de um prato histórico, Carlos Alberto Dória.
Janaína Rueda acha, também, que é uma boa saída ver a graça nessa polêmica. “O cuscuz paulista é muito importante na gastronomia brasileira, tanto que, se não fosse, não seria polêmico. É polêmico porque tem relevância! Eu vejo a disputa entre o cuscuz nordestino e o paulista como uma brincadeira saudável: o nordestino falando que o paulista não tem nada a ver, o paulista falando que o nosso é melhor. É um bairrismo natural”, diz. “Esse tipo de brincadeira acaba sendo interessante para a gastronomia porque promove um diálogo positivo, cada um seguindo as suas tradições”.