SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Artistas indígenas terão um peso inédito na próxima Bienal de São Paulo. São cinco nomes brasileiros e quatro de povos originários de outros países que participam do evento, com início em setembro.
O entusiasmo do circuito artístico com essa produção não é exatamente inédito, no entanto. Em obras que se tornaram seminais da Semana de Arte Moderna, em 1922, padronagens desses povos serviam de influência para nomes como Regina Gomide Graz e August Herborth. Depois, nos anos 1980, uma série de artistas que apoiava o movimento indigenista apresentou trabalhos sobre essas populações na esteira da luta pela demarcação de terras, como a fotógrafa Claudia Andujar.
O que mudou desde então é que, enfim, são os próprios indígenas que participam dessa cena. É o que avaliam curadores e artistas às vésperas da celebração dos cem anos da semana que marcou o início do modernismo no país.
“A gente chega não sendo mais imaginado, mas como um corpo presente mesmo, com consciência, produção, trajetória, história, e com essa essencialidade que é o protagonismo”, diz Jaider Esbell, artista e curador da exposição “Moquém – Surari Arte Indígena Contemporânea”, do Museu de Arte Moderna de São Paulo, o MAM, que acontecerá junto com a Bienal e reunirá trabalhos de 33 artistas.
“É a percepção de estar numa Bienal não mais como um componente exótico, mas com consciência política, inclusive, de estar participando de um dos maiores palcos da arte do mundo, e deixando marcada a nossa diversidade.” O que se vive atualmente, segundo Esbell, é um contraponto ao momento em que a existência indígena foi um “pano de fundo para forjar uma cultura brasileira”.
Ele conta que, na sua pesquisa sobre o tema, se deparou com uma instalação sobre o Xingu realizada na Bienal de 1975 que contava com a presença do cacique Aritana, morto no ano passado, vítima da Covid-19. “Aritana dizia que a arte para os indígenas era uma coisa muito única, e que aquela arte que estava no pavilhão não dizia para ele muita coisa.”
O ineditismo da próxima Bienal não vem só da própria instituição, afirma o curador-adjunto da edição, Paulo Miyada. Para ele, ela tem origem na postura assumida por vários indígenas nos últimos tempos de passar a reivindicar esses espaços institucionais.
Ele afirma, por exemplo, que na Bienal de 1983 houve uma exposição de arte plumária, trabalhos feitos com penas, que pode ter tido muito mais peças de povos indígenas do que a edição que acontece agora. O que é novo é a quantidade de autores ativos em locais como museus e galerias.
Miyada diz que hoje é incontornável pensar que o manifesto antropofágico era um gesto de dupla apropriação. “Existe o roubo da cultura europeia, mas também há uma apropriação da cultura autóctone, de tudo que se levanta como signo de brasilidade, do popular, indígena, negro. O Oswald, a Tarsila, de fato não eram franceses, mas também não eram desse Brasil nativo ao qual eles estavam fazendo referência”, diz.
“É um gesto que tem sua violência, que, naquele momento, é transformadora, porque põe em cena coisas que estavam efetivamente embaixo do tapete, ou presentes somente como romantismo.”
É essa violência que Miyada diz ter ganhado contornos ainda mais claros em alguns projetos modernistas ao longo do século 20. Um dos mais fortes deles está na publicação “Des-Habitat”, do arquiteto Paulo Tavares, que interveio na revista “Habitat”, criada por Lina Bo Bardi.
Na publicação, ele conta a história do Hotel JK, uma extensão do projeto de Brasília na ilha do Bananal, no Tocantins. Construído com a expulsão dos carajás de seu território, o hotel exibia, numa vitrine no lobby, cerâmicas desse mesmo povo. Os próprios indígenas podiam ser observados da janela do prédio.
O artista Denilson Baniwa, que apresentou uma performance na última edição da Bienal, diz ver, em certa medida, uma cilada nesse jogo de entrar no circuito oficial da arte. “O mercado gira em torno de um pequeno grupo que exclui outros indígenas, e a minha presença precisa lidar com essa armadilha”, afirma.
“A minha posição enquanto artista indígena nesse mundo que me quer agora, porque não me quis, é como uma ferramenta de luta, para uma mudança real da minha comunidade e da minha região.”
Baniwa brinca que, no mercado de hoje, “citando Britney Spears, todo mundo quer um pedaço de mim, e dos meus companheiros”.
Mas a dimensão comercial desses trabalhos ainda parece engatinhar. Os artistas entrevistados para a reportagem -como os próprios Baniwa e Esbell ou Sueli Maxacali- não são representados por galerias, apesar de assinalarem que várias delas têm procurado seus pares.
Isso acontece também por uma escolha deles, que optam por não entrar no mercado em configurações tradicionais. É o caso de Esbell e Baniwa. O primeiro, por exemplo, criou um vínculo de parceria com a Millan, em São Paulo, fora dos moldes tradicionais de venda.
A curadora Sandra Benites, primeira indígena a ocupar o cargo em uma instituição no Brasil, no Masp, diz que a venda de obras de arte indígenas ainda está caminhando. Mas afirma que há um interesse comercial, e que os artistas têm vendido suas obras também por conta própria.
“Essas obras estão muito associadas à cosmovisão, a como os indígenas enxergam o mundo. E isso tem a ver com a sabedoria, com uma imagem que é do coletivo”, diz a curadora.
É o que retoma Sueli Maxakali, que também estará na Bienal, ao falar sobre seu trabalho –segundo a artista, as obras feitas por ela e por outros do seu povo se baseiam nos yamiyxop, espíritos da floresta para os maxakalis.
Benites diz ainda que a mudança não deve ser só no sentido de inserir os indígenas no circuito, mas de trabalhar e estudar suas perspectivas no processo de colonização –tanto a violência contra eles, quanto a cosmologia dos diversos povos que habitaram, e que ainda habitam, o país.
“As pessoas querem que, dos índios, saiam coisas indígenas, porque é mais fácil de digerir”, diz Denilson Baniwa. “Mas a coisa toda é mesmo pensar essa quebra de expectativa, mostrar que a gente pode apresentar coisas que as pessoas talvez não estejam esperando do ponto de vista artístico, intelectual e de luta.”
As diferenças entre os trabalhos é imensa do ponto de vista estético, como lembra Pablo Lafuente, à frente do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e um dos responsáveis pela mostra “Dja Guata Porã – Rio de Janeiro Indígena”, sobre a história desses povos na capital fluminense, exibida no Museu de Arte do Rio há cerca de quatro anos. Esses artistas são, inclusive, sujeitos que partem de contextos muito diversos –de aldeias isoladas a vivências em contextos urbanos.
Jaider Esbell concorda. Para ele, as poéticas dos artistas contemporâneos indígenas estão tão bem organizadas que dissolvem a possibilidade de serem postas em uma caixinha do que é indígena.
Baniwa também avalia que todo o revisionismo em torno da Semana de 22 e do modernismo brasileiro é um tanto cômico, já que, em vários desses eventos, “é um monte de gente branca brigando por um reconhecimento de algo sobre o qual eles não fazem ideia” que existia. “É como se a intelectualidade não nos coubesse.”
“Existem pessoas que têm mais autoridade para encarar essa onda. O Jaider, por exemplo, é neto de macunaíma”, diz Baniwa. Na cultura makuxi, povo de Jaider Esbell, macunaíma é um dos filhos do Sol -e está distante do herói sem caráter de Mário de Andrade. “Quem mais teria esse direito?”