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Lazer e CulturaBienal de São Paulo tenta furar clima de ódio com obras que impõem convívio

Bienal de São Paulo tenta furar clima de ódio com obras que impõem convívio

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SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Negociar aos gritos num pregão, sentar numa roda de cadeiras para conversar com estranhos ou costurar uma peça têxtil em grupo são atividades que pressupõem o convívio nem sempre harmônico entre diferentes. Apostando nas possibilidades do diálogo, uma série de obras expostas na 34ª Bienal de São Paulo vai na direção contrária ao clima de ódio e de aniquilação do outro dominante no país desde as últimas eleições presidenciais.

Por terem sido feitas de maneira coletiva –tendo a assinatura de vários artistas ou de artistas em conjunto com membros de uma comunidade–, ou por dependerem da participação dos visitantes ao vivo para atingirem seu potencial máximo, tais obras propõem valores como a convivência, o trabalho em equipe e o confronto de ideias, caros a um conceito mais amplo de cidadania que parece estar em falta no país.

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“Não é que o artista vire um político, mas é que de fato podem haver diálogos em que o pensamento artístico possa colaborar de maneira precisa e radical no pensamento de fazer cidade. São estratégias para que encontros possam se dar, relações possam acontecer e coisas possam ser feitas a partir disso. Está na hora, já passou da hora. Esse é o nosso momento histórico, é o que nos coube viver”, afirma Eleonora Fabião.

Conhecida por suas ações nas ruas, a carioca realiza uma troca de cadeiras entre 27 instituições públicas num raio de cinco quilômetros do prédio da Bienal, entre as quais a Assembleia Legislativa, a Biblioteca Mário de Andrade, a escola estadual Professora Marina Cintra e o Hemocentro da Unifesp. As cadeiras serão levadas em varas de mais de três metros de altura pelas ruas de São Paulo de suas salas originais até o espaço da Bienal, onde serão colocadas lado a lado, simbolizando uma articulação imaginária entre essas instituições.

A certa altura da mostra, haverá uma roda de conversa, nessas cadeiras, entre os representantes das instituições, para fomentar trocas entre agentes que não necessariamente conversam hoje. No final da exposição, as cadeiras não voltarão para seus prédios de origem –cada uma irá para algum dos órgãos participantes da ação, configurando uma obra de arte com final aberto. Durante a Bienal, os visitantes podem se sentar na obra.

Outro trabalho que convida os espectadores à participação é “The School of Narrative Dance”, ou a escola da dança narrativa, um vídeo que ensina movimentos semelhantes aos do parkour. O trabalho é fruto de uma série de oficinas realizadas online pela artista italiana Marinella Senatore e pelo grupo britânico Esprit Concrete com moradores de Cidade Tiradentes, na zona leste de São Paulo, durante os quais os participantes corriam pela sala de casa e tocavam em todos os objetos, por exemplo.

“Pedimos para as pessoas fazerem movimentos livremente e então impomos restrições, como não usar um membro ou tirar algo com o que elas se sentiam confortáveis. A partir daí, pedimos para eles serem eles mesmos, para incorporarem a noção de que, seja com a pandemia, com regras ou o que for, a nossa liberdade é frequentemente prejudicada”, diz Kasturi Torchia, terapeuta e instrutora de parkour do Esprit Concrete.

O discurso de superação de Torchia tem um quê de autoajuda que pode soar vazio mas, segundo ela, durante as oficinas virtuais os participantes puderam estabelecer vínculos com pessoas com quem não treinariam habitualmente. Nesse sentido, argumenta, as aulas criaram um senso de comunidade num momento especialmente difícil como a pandemia.

Também faz parte desta obra uma instalação circular de luzes, presa ao teto, onde se lê “outras pessoas nos erguem ao levantar”. Luminárias como essa são uma constante para Senatore, que ela afirma serem baseadas numa tradição do sul da Itália, sua região de origem, e que considera uma forma de arquitetura temporária.

“Nada aparece sem experiências de vida por trás e tempo compartilhado com as pessoas”, ela diz, sobre o processo que levou à obra, se referindo também à convivência com o grupo gerada pelas oficinas. “O resultado final é o resultado desse esforço. É importante para as pessoas serem vistas, para a dignidade delas, e pela beleza e pela poesia [da obra de arte].”

O trabalho de um coletivo é materializado com mais clareza nos grandes carpetes coloridos da coreógrafa israelense Noa Eshkol, tecidos por ela e por outros membros de seu grupo de dança, o The Chamber Dance Quartet. A produção têxtil a várias mãos começou quando um bailarino homem foi enviado para defender Israel na guerra do Yom Kippur, em 1973 –sua saída causou uma crise no grupo, que vivia e trabalhava junto, conta Marilia Loureiro, curadora da mostra sobre Eshkol agora em cartaz na Casa do Povo, em São Paulo.

Durante a guerra, as bailarinas pararam de dançar e passaram a recolher sobras de tecidos nas ruas, para em seguida as costurarem e criarem os tapetes, como uma forma de esperar “o herói que está na guerra”, acrescenta Loureiro, fazendo uma comparação com o mito grego de Penélope e Ulisses. O bailarino retornou depois do conflito, mas o grupo não parou de tecer, passando a costurar de manhã e a ensaiar no período da tarde, até a morte de Eshkol, em 2007. Haverá oito tapetes em exibição na Bienal.

Como uma espécie de contraponto à ideia de harmonia coletiva dessas obras, o trabalho de Daniel de Paula, David Rueter e Marissa Lee Benedict, uma roda de negociações usada até há poucos anos na Bolsa de Chicago, evoca imagens de relações de exploração. Na estrutura que lembra uma arquibancada, resgatada pelo trio no momento de seu descarte, em 2018, eram negociados aos berros preços de grãos como milho e soja, influenciando os valores dessas commodities no Brasil e em outros países e evidenciando a força do sistema financeiro global, segundo os artistas.

“É notório que estamos num momento político no Brasil em que há uma expansão agrícola estimulada pela especulação financeira. Isso promove diversas formas de violência, desde o desmatamento até a grilagem de terra, violência contra comunidades locais. E todas essas são, digamos, resultantes das dinâmicas desse mercado financeiro que aconteciam nessa estrutura”, comenta Daniel de Paula.

Ao negociarem a exibição do trabalho com a Bienal –mostrado agora num dos lugares mais nobres do pavilhão–, ficou estabelecido em contrato que os encontros públicos a acontecerem na roda, como parte da programação do evento, deverão estimular o conflito ou a oposição de ideias, nunca a harmonia, numa alusão à natureza de confronto da própria estrutura. Ou seja, esse trabalho deve ganhar vida em diversos momentos. Para manter a civilidade, estão proibidos discursos de ódio e assédio.

“Se for para fazer palanque de um, não precisa ser aqui, tem outros mil lugares. A nossa vida inteira está organizada em palanques de um falando para espelhos de si mesmo. Então se tem isso, é para ser algo mais complexo”, diz um dos curadores da Bienal, Paulo Myiada. A obra será ativada todas as quintas e todos os sábados e em alguns dias avulsos, com apresentações de música erudita, a cargo do teatro Cultura Artística, e contemporânea, sob responsabilidade do festival Novas Frequências.

Há também a intenção de fazer ali debates sobre questões inerentes à obra, como noções de capital, de terra e de trabalho, segundo o curador, além de conversas com artistas participantes da mostra. O público será limitado a 50 pessoas, devido à pandemia, embora a estrutura tenha espaço para 300. No restante do tempo, o trabalho poderá ser acessado pelos visitantes.

A roda de negociações do pregão, apresentada agora pela primeira vez, não passou por manutenção ao ser recuperada pelo trio e guardada num galpão de Chicago –há nela as marcas de décadas de uso por centenas de operadores simultaneamente, como trechos em que a borracha do piso se solta. Conforme for sendo transportada e exposta em vários lugares, vai lentamente se degradar ainda mais, numa atitude intencional dos artistas.

“Não temos nenhum interesse em fazer dela um monumento ou de preservar como um objeto histórico”, diz Daniel de Paula.

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