É paradoxal que o revolucionário grupo Teatro Vivencial, criado na cidade de Olinda, em Pernambuco, em 1974, retratando temas como a homossexualidade, a liberdade sexual e a relação da juventude com as drogas, seja egresso dos trabalhos da Associação dos Rapazes e Moças do Amparo (Arma), ligada à Arquidiocese de Olinda e Recife.
Entretanto, foi com base na Igreja Católica que o grupo, um dos pilares da contracultura pernambucana da década de 1970, com influências do tropicalismo, se formou e criou boa parte de sua obra inicial. É, guardadas as devidas proporções, a trajetória da companhia dirigida pelo postulante a monge beneditino Guilherme Coelho, que serve de plano de fundo para Tatuagem, o longa que estreou em 2013, dirigido por Hilton Lacerda e vencedor do Kikito de Melhor Filme (honraria máxima do Festival de Cinema de Gramado).
A obra narra a história de amor entre Fininho, um jovem soldado das Forças Armadas (vivido no filme por Jesuíta Barbosa), e Clécio (papel de Irandhir Santos), o dono de uma trupe de artes do interior de Pernambuco em plena ditadura militar – a ação se passa em 1978. O relacionamento coloca Fininho diante de um grande problema: como viver esse amor e continuar trabalhando no rígido ambiente militar em pleno regime de exceção?
O desbunde do filme de Hilton Lacerda tocou o diretor e multiartista Kleber Montanheiro ainda em 2013, e voltou a emocioná-lo quando, em um processo de revisão das obras que marcaram sua vida, reviu a película durante o auge da pandemia do coronavírus.
VISIBILIDADE
“O momento que nós temos vivido, tanto com toda a questão da pandemia quanto com as questões de visibilidade e existência, seja da população LGBT, seja dos nordestinos em São Paulo, me fizeram ter outro olhar para esse filme”, relata o diretor e fundador da Companhia da Revista, que decidiu adaptar a obra para os palcos.
“Recontar essa história já traz essa visão de que há uma resistência e uma existência. É a possibilidade de existir sempre, quando a gente começa a ter os direitos não igualados. Isso me traz essa vontade de recontar essa história num período que tem muito mais a ver com esse grupo Chão de Estrelas”, avalia Montanheiro.
Em cartaz no palco do Espaço da Cia. de Revista até o dia 6 de junho, a adaptação teatral de Tatuagem segue os caminhos do roteiro original com uma alteração substancial: o espetáculo foi transformado em um musical com canções do grupo As Baías, formado por Raquel Virginia, Assucena e Rafael Acerbi, desativado em setembro de 2021.
“Existem várias camadas da música dentro da peça. Como as canções das Baías não contam uma história com começo, meio e fim, mas falam sobre um tempo, muitas vezes, a música tem uma função narrativa. Às vezes, funciona como um pensamento de uma personagem, comenta uma ação anterior e até anuncia algo que está por vir”, explica.
TRILOGIA
A montagem faz parte da trilogia Conexão São Paulo – Pernambuco, iniciada em 2021 com a adaptação do romance Nossos Ossos, de escritor pernambucano Marcelino Freire. A partir desse projeto, a Cia. de Revista iniciou um diálogo com a arte pernambucana sem jamais deixar de discutir assuntos caros ao grupo, como a representatividade e questões ligadas às pautas LGBT.
“Essas discussões evoluíram em alguns aspectos. Se pensarmos que a transgeneridade em 2013, quando o filme foi lançado, não era um assunto discutido como é agora, com outro alcance, outra aceitação dentro da nossa sociedade, eu acho que evoluímos, mas são conquistas que são sempre atacadas, então ficamos todo o tempo reafirmando-as, e isso é bem importante”, observa Kleber Montanheiro. “Evoluímos em alguns aspectos e, às vezes, parece que vamos para trás e continuamos tentando resistir e mostrar que é uma discussão que tem que existir sempre.”
E estas evoluções ficam aparentes no elenco, formado por André Torquato, Bia Sabiá, Cleomácio Inácio, GuRezê, Júlia Sanchez, Lua Negrão, Lucas Truta, Mateus Vicente, Natália Quadros, Romário Oliveira e Zé Gui Bueno, sob a direção musical e arranjos de Marco França.
REPRESENTATIVIDADE
“Dentro da Cia., temos o pensamento de que a representatividade é importante, estamos ouvindo o que está ao nosso redor. Quando fizemos a chamada para o elenco e criamos a ficha técnica, pensamos na representatividade criando esse diálogo com todas as falas. É assim que é o Chão de Estrelas, assim que era o Vivencial e assim que é a Cia. de Revista, com um olhar libertário de resistência contra uma época. Esse olhar é extremamente necessário”, finaliza o encenador.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.