Por mais incômoda que ainda lhe seja, de quando em quando Keila Gentil rememora uma importante lição – às avessas – que obteve de uma professora em sala de aula, quando cursava Direito em uma universidade de Belém e já encaminhava a carreira de cantora. “Ela falou na frente de todos: a música que ela canta não é música, é barulho, é coisa de periferia. Aqui, vocês são elite, têm de ouvir Caetano, Chico, Tom Jobim.” Na verdade, o destrato sintetizou o que setores da elite paraense pensam sobre a música popular do Pará. “Saí da sala e fui chorar no banheiro”, recorda. “Mas aí pensei: em seu início, até o samba passou por isso, por preconceito. Tenho de costurar essas arestas e ir em frente.”
Deu certo. Tempos depois, seu grupo, a Gang do Eletro – ela, DJ Waldo Squash, Will Love e Marcos Maderito -, forjado nas periferias de Belém e já com alguns anos de estrada, recebia o Prêmio Multishow de Artista Revelação 2012, coroando a ousadia de embrulhar com irresistível roupagem pop a estética e o som das aparelhagens, fenômeno de massa de DNA 100% paraense, e o chacundum como o tecnobrega e sua renomeação “ocidentalizada” do tecnomelody – este alçado em 2013 a patrimônio cultural imaterial do Estado.
CARREIRA SOLO
Com seu eletromelody de batidas dançantes, a Gang do Eletro, ao lado de Gaby Amarantos, “levantou” e disseminou a prolífica cena melody, inspirando êmulos como a goiana Banda Uó. Mas rolaram águas na baía do Rio Guajará (Belém). Como uma das vocalistas do grupo, Keila, dona de registro vocal seguro, praticamente personificou contagiantes hits de pista como Galera da Laje e Só no Charminho – sem falar da dança do “treme”, que fez história. “Na Gang, era só a vocalista, não tinha espaço criativo”, conta. “Comecei a questionar minha permanência.
Nunca houve outras questões, apenas desalinhou. Enquanto mulher da periferia, eu sempre tive muitas coisas para dizer, várias pautas, por isso queria cantar minhas letras. E também, eu enxergava o tecnomelody como ritmo periférico que se conecta com outros ritmos periféricos.” Nascia, assim, a carreira solo. Malaka (2019, DeckDisc), o primeiro álbum, inaugurou o diálogo da cantora com rap, funk e até batidão nordestino. “Malaka tem dança, tem diversão, mas, a começar pela capa, era um grito, falava de coisas necessárias em um momento tenso, crítico, por conta do atual governo. E incentivava outras ‘manas ao corre'”, explica a cantora.
Pega pela pandemia em plena divulgação do trabalho, Keila investiu em uma sequência de singles, inéditos. “Com vibe de aparelhagem”, diz. Casos de Boca de Açaí, #livre (Anota a Placa e o libelo feminista Revolução. “Após Malaka, eu estava em turnê, tinha até contrato com grandes festivais. Mas esse período de pandemia serviu para repensar minha carreira. Eu estava muito voltada para um público alternativo, de festivais, tinha me afastado das aparelhagens e das massas, que é de onde eu e a Gang do Eletro viemos.” O novo trabalho reuniria os singles em um EP independente, mas o longevo contrato recém-assinado com a Virgin Music modificou o quadro. “Estou retrabalhando o material para um primeiro álbum pela gravadora. No Rio, com o produtor Xavier 2Bit, e em Belém, com o Rodrigo Camarão”, avisa.
DEVOÇÃO À MÚSICA LOCAL
Alguns pontos, ela adverte, são inegociáveis. O primeiro deles, claro, é a devoção aos ritmos do Pará, que deve dar o tom do trabalho. “Musicalmente, sou muito livre, não me prendo a amarras. Porém, minha carreira é pautada pelo tecnobrega.” Depois, ela avalia, o entendimento, a valoração dessa cultura rítmica que vai muito além do tecnobrega, mas de certa forma ainda distante dos grandes públicos (leia-se, sudeste), e não raro ignorada no próprio Estado.
“Temos falado muito sobre esse processo de descolonização à brasileira”, reflete a moça nascida em Manaus, mas cria das ruas do Guamá, vizinhança mais populosa de Belém, palco de não poucos problemas sociais. “Precisamos nos ver como potência, parar de nos colocarmos como segregados. Valorizar não só o melody, o brega, mas a guitarrada, o carimbó, o siriá. Somos tão grandes quanto as culturas periféricas do Rio, de Salvador, do Recife, de São Paulo. Temos nossa personalidade, estilo, influências afro-indígenas. Meu trabalho é sobre isso: a autoestima do povo nortista.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.