Rintu Thomas e Sushmit Ghosh conversam com o repórter do Estadão de Nova York. O casal de cineastas indianos está fazendo história por colocar a Índia, pela primeira vez, na disputa do Oscar de melhor documentário. Seu filme se chama Escrevendo com Fogo e aborda a luta de mulheres jornalistas para transformar o impresso Khabar Lahariya, da zona rural de Uttar Pradesh, num empreendimento digital. Só o fato de serem mulheres já lhes criaria problemas numa sociedade machista, mas a questão não é só de gênero. Elas são mulheres dalits.
Na classificação social indiana, são párias, ou intocáveis. Os párias não possuem casta, representam a poeira sob os pés do deus Brama. Realizam os trabalhos considerados impuros pelas demais castas.
Só com muita determinação, e luta, essas mulheres dalits puderam criar e manter um jornal. O documentário deu-lhes projeção internacional, com reconhecimento no The New York Times e no The Washington Post, nos EUA, e no The Guardian, britânico.
A migração para o digital lhes vale hoje o acompanhamento de milhões de seguidores. Mesmo que Escrevendo com Fogo não receba o Oscar, já mudou a vida dos cineastas, e das jornalistas. “Estamos em Nova York a caminho de Los Angeles. Nossa vida está uma loucura. Todas essas entrevistas, a exposição que o Oscar representa. A Índia possui uma produção ficcional muito intensa. Todo mundo sabe que existe Bollywood. Estamos mostrando uma outra realidade, uma outra forma de fazer os filmes. Estar no Oscar é muito estimulante. Abre uma janela importante para a produção não ficcional independente, não só na Índia, mas em toda a Ásia.”
O repórter desculpa-se. Nunca havia ouvido falar no jornal. “Nós também não. Chegamos ao tema através de uma fotorreportagem mostrando as mulheres dalits que denunciavam a exclusão social em sua região. A Índia é um país imenso, com mais de um bilhão de habitantes. Uma parcela significativa dessa população vive abaixo da linha da pobreza, mas não foram exatamente as denúncias dessas condições sub-humanas que nos levaram a fazer o filme. Foram as mulheres, as jornalistas. Há uma cena no filme em que Meera, a chefe de redação, entrevista um poderoso chefe local. Ele mostra sua espada, diz que não se separa dela. O tom é ameaçador, mas ela, pequena como é, não se intimida. Fala com ele com curiosidade, e até empatia. O homem termina por fazer uma confissão. Foi o suicídio do pai, um agricultor atingido pela crise do setor, que o transformou em quem é. O respeito pelo seu objeto de investigação. Aquilo é uma lição de jornalismo que pode ser entendida no mundo todo.”
O filme demorou cinco anos para ficar pronto. Rintu e Sushmit reuniram muito material. A produção é predominantemente ficcional. Radicalizaram. Decidiram que o filme deveria ter apenas 90 minutos. Isso significava cortar, cortar, cortar. “Chegamos à essência do tema, e das personagens. A história desse jornal, e das mulheres jornalistas, é também a história de seus entrevistados.” A velhinha que vive numa área sem saneamento básico e faz suas necessidades no mato. “Há um mundo em transformação, pessoas que nunca tiveram voz. E falam.”
CONTROLE
Escrevendo com Fogo ainda não foi exibido na Índia. O governo exerce rigoroso controle sobre a televisão. A solução será levar o filme para os cinemas, mas será preciso abrir uma brecha na programação. O repórter aproveita para contar que São Paulo sedia um importante evento internacional de documentários que está justamente para começar – no dia 31. O É Tudo Verdade deste ano homenageia, entre outros, o grande Dziga Vertov. Quem são os mestres de Rintu e Sushmit? “Frequentamos a escola de cinema e, naturalmente, sabemos quem é Dziga Vertov. No começo da nossa entrevista você citou Satyajit Ray. Conhecemos os grandes, mas estamos construindo a nossa via, seguindo nosso caminho. Queremos fazer filmes que reflitam o mundo.”
Escrevendo com Fogo está disponível nas plataformas Claro Now, iTunes/Apple, Google/YouTube e Vivo Play.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.