Tapa à parte, a cerimônia do Oscar realizada no dia 27 de março teve outros momentos pouco brilhantes. Na apresentação do prêmio de animação, vencido por Encanto, três atrizes que interpretam princesas da Disney leram um texto que tratava a linguagem como algo para crianças. Só que, entre os cinco concorrentes, um não cabia nessa caixinha limitante: Flee – Nenhum Lugar para Chamar de Lar, de Jonas Poher Rasmussen, um documentário sobre um refugiado afegão na Dinamarca.
O filme fez história naquela noite, mesmo sem levar nenhuma estatueta para casa, por ser a primeira obra a disputar nas categorias animação, documentário e filme internacional. Depois de exibido no Festival É Tudo Verdade do ano passado, o longa finalmente chega aos cinemas brasileiros no próximo dia 21. “Para muita gente, é difícil aceitar que a animação pode ser um meio para adultos também”, informou Rasmussen em entrevista ao Estadão, por videoconferência.
E como seu uso faz sentido em Flee. Rasmussen conheceu o personagem de seu filme quando ambos ainda eram adolescentes, em uma vila na Dinamarca. Amin, seu nome fictício no longa, era diferente. “Eu fiquei curioso porque, na falta de uma palavra melhor, ele era exótico”, admitiu Rasmussen. Ficaram amigos. Sempre existiu, porém, um muro entre eles: o segredo sobre o percurso de Amin do Afeganistão até ali. Quando estava trabalhando em rádio, Rasmussen tentou convencer Amin a contar sua história. “Ele me disse que não estava pronto”, lembrou o diretor. “E que, quando estivesse, compartilharia comigo.”
Nesse meio tempo, Rasmussen fez um workshop sobre documentários em animação. “Vi como era eficaz para reviver o passado”, explicou o cineasta. Flee teria de voltar à infância e adolescência de Amin antes de chegar aos dias de hoje. Rasmussen conversou, então, com o amigo. “E ele ficou intrigado por poder permanecer anônimo por trás da animação”, afirmou. “O que se ouve no filme é a sua história contada pela primeira vez. Não foi fácil para ele, que só topou porque nos conhecemos há 25 anos.” Amin também não queria ser reconhecido no supermercado nem ter de responder a perguntas. Tanto que não participou de entrevistas.
TRAUMAS
A animação também era a linguagem ideal porque o filme trata de memória e trauma. “Com a animação, dá para usar uma camada mais surreal e expressiva. De certa forma, dá para descrever essas coisas de maneira mais honesta do que com uma câmera normal”, analisou o diretor. Ele tinha visto como uma animação podia lidar com assuntos difíceis em Valsa com Bashir (2008), em que o cineasta Ari Folman recupera memórias e traumas da sua participação como soldado israelense na Guerra do Líbano de 1982. “Uma animação é capaz de abrir essas histórias difíceis para que as pessoas ouçam melhor”, afirmou Rasmussen.
Flee começa deixando clara sua verdadeira natureza. O diretor Jonas senta-se ao lado da câmera. Seu entrevistado, Amin, senta-se do lado oposto. Amin não esconde o nervosismo. Mas o Jonas do filme é loiro. O Jonas real, não. A aparência de Amin, claro, também é diferente. Uma câmera captou seus movimentos para a equipe de animação replicar seu gestual. “Eu comecei o filme assim porque queria passar a ideia de que é tudo autêntico”, garantiu. Amin começa a revelar sua história, desde a infância livre, quando corria pelas ruas metido em um vestido. Seu depoimento, que contém a verdade sobre seu passado, é intercalado com cenas de sua procura por uma casa com o namorado, com quem vai se casar.
IDENTIDADE
A ideia de Rasmussen nunca foi fazer um filme sobre refugiados, mas, sim, sobre seu amigo Amin, que, por acaso, era um refugiado. Por coincidência, as primeiras entrevistas foram feitas quando a crise de refugiados na Europa estava no auge, em 2015. “Normalmente a história dos refugiados não tem nuances. Ser refugiado torna-se a sua identidade”, avisou Rasmussen. “Mas não é. Fiquei com esperança de que narrar a história de um refugiado por meio de uma amizade pudesse oferecer mais nuances.”
Ser refugiado é uma circunstância da vida que marca para sempre, de muitas maneiras, inclusive fazendo alguém guardar um segredo por 25 anos. “Ser refugiado é algo que Amin viveu e superou. Ele construiu uma vida para si”, lembrou o diretor. “É ainda um acadêmico, gay, dono de uma casa, tem um gato, é amigo, é muitas outras coisas.”
O cineasta lembrou que todo ser humano, em qualquer parte do mundo, pode tornar-se um refugiado – a crise na Ucrânia só deixou isso mais evidente. “Espero que o filme ajude a enxergar que os refugiados são pessoas como nós.” No caso de Amin, poder finalmente contar para Jonas e outros amigos a verdade completa derrubou o muro que havia no relacionamento, mas não só. “Eu acho que ajudou Amin a conectar seu passado e seu presente, tornando-o um ser humano mais completo.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.