Desde que foi criada, em 1990, a Lia Rodrigues Companhia de Danças se propõe a pensar na sociedade ao colocar no palco os desafios do mundo moderno e opressivo em que vivemos. Com temáticas universais, o grupo leva sua arte para outros países, como fez no começo do ano em turnê por várias cidades da França.
De volta ao Brasil, a companhia faz apresentações, a partir desta quinta, 14, no Sesc Pinheiros, em São Paulo. Nela, o público poderá conferir a forte e contundente coreografia Fúria, que foi premiada pela APCA (Associação Paulista de Críticos de Artes) em 2019.
Em entrevista ao Estadão, a coreógrafa e fundadora da companhia, Lia Rodrigues, vê o público como um coautor das obras que coloca em cena, por isso, avalia, a aceitação internacional. “É ele (o público) quem vai, a partir do que oferecemos, criar o sentido para o que está no palco”, lembra Lia, que vê seu trabalho alcançar infinitas maneiras de ser percebido e avaliado. “Acho que isso é uma das coisas mais maravilhosas que a arte nos oferece, ou seja, esse lugar de viver uma experiência única e que pode ser transformada várias vezes.” Para ela, “é sempre um desafio pensar na relação entre o que você cria e os diferentes espectadores de diferentes partes do mundo”, diz.
Na criação de Fúria, Lia explica que foi usado o que estava ao redor: roupas, objetos, pedaços de plástico, materiais de outras criações. “Tudo está a serviço para abrir o campo de possibilidades”, acredita e, por isso mesmo, define como um movimento de reciclagem. “Com esses materiais, você pode criar o que quiser – um rei, uma rainha, um barco, uma procissão.”
UMA PALAVRA
Questionada sobre o nome do espetáculo, Lia diz que a palavra “fúria” pode ter interpretações diferentes, como raiva, cólera, ira. “Mas pode também significar uma força de ação positiva, um entusiasmo, um arrebatamento, um ímpeto” e por isso procura em suas “ações e criações utilizar todas as possibilidades contidas nos diferentes significados dessa palavra”.
Essa variação de possibilidades leva a coreógrafa a associar Fúria à realidade brasileira, na qual, como ela diz, “nada é certo, mas também mostra que tudo é possível”. O que reflete no cerne de seu trabalho, pois “tudo pode entrar em colapso, mas temos de encontrar uma maneira de resistir, de permanecer a todo custo”.
E essa é uma constatação que Lia e seu grupo vivenciam de forma bem próxima. Desde 2004, o grupo se estabeleceu na favela da Maré no Rio, onde desenvolve projetos artísticos e pedagógicos em parceria com a Redes da Maré. A coreógrafa destaca que a favela tem muito a ensinar. “As pessoas que vivem lá aprenderam a se reinventar todos os dias. Existe nas favelas uma extraordinária produção de pensamento, de criação de projetos pioneiros, de modos de sobrevivência, de construir, de viver e criar”, afirma.
INSPIRAÇÃO. Espetáculo forte, dramático, que lança um olhar crítico para as questões sociais, Fúria, segundo conta Lia, tem suas cenas inspiradas em uma coleção de imagens encontradas na internet ou em livros.
“Mergulhamos nessas imagens e a partir daí construímos situações coreográficas, movimentos, cores, texturas, ambiente”, revela a coreógrafa, que afirma ter sido a obra da escritora Conceição Evaristo de grande importância para a criação. “Ela fez uma exposição no Centro de Artes da Maré, onde trabalhamos no Rio, e seus textos nos ajudaram em nossos improvisos, assim como a obra de Rosana Paulino (artista visual) nos inspirou também.”
Outro ponto de destaque do espetáculo é a música, que marca cada passo ou gesto dos bailarinos. Desde o primeiro momento em cena, o grupo entra sob o som de batuque indígena. “Há muitos anos ouço Canções Kanak: Cerimônias e Canções de Ninar da Nova Caledônia, gravadas entre 1984 e 1987”, lembra Lia Rodrigues sobre a escolha da trilha sonora.
“As vozes, o ritmo, as músicas me tocam profundamente, assim como a história desse povo que sofreu muito com a colonização francesa. Então, finalmente, com Fúria consegui usar uma dessas músicas em loop. Ela apoia o trabalho do começo ao fim.”
Lia Rodrigues Cia. de Danças
Teatro Paulo Autran
Sesc Pinheiros. Rua Pais Leme, 195,
Pinheiros. Tel. (11) 3095-9400.
5ª e sáb., 21h; dom., 18h.
Ingressos: R$ 40 (bit.ly/3xviq3f)
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.