Aos filhos, Bezerra da Silva era mais do que o sambista que falava sobre a vida nas favelas, vendia discos como pão quente, criava uma divisão particular para um partido inventado por amigos da Baixada Fluminense e não conseguia dar dois passos sem ser reconhecido por um fã. Ao saber que um de seus moleques pensava em se lançar no samba, sentou-se olhando em seus olhos. “Se você se lançar agora, as pessoas vão compará-lo a mim e você não vai ter chance alguma”, aconselhou. “Não precisa ser o melhor, mas seja você mesmo”, continuou. E, dentre mais conselhos validados pela natureza de quem já havia passado dias morando nas ruas e 15 anos vivendo na Favela do Cantagalo, foi reto: “Não faça m… com meu nome”.
Thalamy, o filho, não é mais um menino e ainda ouve a voz do pai mesmo depois de perdê-lo em 2005. “Eu penso nisso todos os dias. Agora, perdi o medo”, diz ao Estadão enquanto divide com o repórter um filé à cubana no Sujinho da Rua da Consolação. Seu nome no samba é Ítalo Bezerra da Silva, o que já diz algo. Mesmo sabendo que poderá sofrer as mesmas incompreensões que circundavam Bezerra, aquele que cantava o que nem hoje nem tempo algum ousou cantar, Ítalo começou a preparar o que será seu primeiro álbum sem desviar do caminho do pai. Ou seja, lá vem bronca.
“Eu ouvi todos os discos do meu pai, do primeiro ao último. Fiz isso por dois anos antes de decidir pegar o mesmo caminho”, afirma. Alguns personagens que habitam velhos LPs de Bezerra com um humor tipicamente fluminense, como a sogra, o defunto e o caguete, estarão de volta. Alguns temas, talvez não. Não dá mais para falar de sexualidade alheia usando termos que Bezerra usava, Ítalo sabe. Mas não haverá alívio para choques sociais de uma realidade na qual só os olhos de Bezerra entravam para trazê-la sem o filtro da romantização. O primeiro samba de Ítalo será “Matar em Nome de Deus”, uma parceria com Dom Fabinho, que soa como encrenca grande demais até para rappers de elite.
PAPO RETO. Sem subterfúgios semânticos – já que o papo em linha reta é marca dos bezerristas -, o samba fala sobre o poder do tráfico atuando no fechamento forçado de casas de umbanda e candomblé dos morros: “Você que é o linha de frente e manda aqui na área / dita as regras para a rapaziada / se liga no papo e preste atenção / quando você chegou eu já estava / eu conheço a rapaziada / tenho respeito e consideração”. E vai apertando: “Malandragem, eu não sei o que aconteceu / tu cantava para Zé Pilintra / hoje mata em nome de Deus”. Ele se refere a criminosos que pertenceram a religiões afro-brasileiras, mas que se converteram às denominações evangélicas – o que não seria um problema se esses neo-evangélicos não continuassem no crime mandando fechar terreiros sob ameaça de morte. “Eu sou macumbeiro / respeite a minha religião /quem foi que te falou /que filho de santo tem imagem do cão?” E mais: “O estatuto da malandragem nunca mudou / quem bate cabeça também respeita o nome do Senhor”.
Outro samba tem o nome “É Tanta Palhaçada”, feito por Douglas Chará, Guina Souza e Diego Henrique. Ítalo chegou a ser advertido para não gravá-lo, já que o País anda politicamente bélico, mas se lembrou de seu pai cantando “doa a quem doer, quem não gostou come menos”, e decidiu gravar. Ao tempo em que prepara o lançamento do primeiro single, Ítalo anuncia que vai passar com seu Tributo a Bezerra da Silva por Fortaleza, no Clube Náutico Atlético Cearense, em 31 de julho. Quer fazer pelo pai o que muitos artistas que se recusam silenciosamente a gravá-lo não fazem.