O humorista e apresentador Jô Soares, que morreu na madrugada desta sexta-feira, 5, em São Paulo, aos 84 anos, depois de uma carreira de mais de cinco décadas, contou que temia não conseguir mais trabalhar ao ser processado pelo regime militar, em 1969.
No segundo volume de O Livro de Jô – Uma Biografia Desautorizada (2018), ele lembrou do processo que sofreu, em 1969, do regime militar, incomodado com um bem-humorado texto sobre as várias utilidades da cama, publicado no semanário satírico Pasquim. De uma fase tão conturbada, aliás, Jô colecionava o que considera um dos momentos mais emocionantes de sua vida: uma carta de apoio, datilografada e assinada por Carlos Drummond de Andrade, que foi usada em sua defesa.
“O fato de estar sendo processado pelo regime militar havia me deixado inseguro; se fosse condenado, seguir minha profissão se tornaria difícil, duas condenações poderiam me levar à prisão ou eu seria obrigado a me autocensurar, o que é o mesmo que decretar o fim da carreira de humorista”, contou ele, ao Estadão. Por fim, o processo não deu prosseguimento
Autobiografia
Essa é uma das várias histórias que constam nos dois volumes autobiográficos do humorista. O projeto levou muito tempo para ser executado pois Jô manteve durante vários anos um arquivo em seu computador com o nome de BIO – ali, pretendia escrever a sua autobiografia. “Mas o máximo que consegui foi colar um texto que o Millôr Fernandes fez sobre mim e uma ou outra frase”, contou ele ao Estadão em 2017, sem esconder a frustração. A virada de jogo ocorreu quando recebeu a visita de Luiz Schwarcz e Matinas Suzuki Jr., da Companhia das Letras. Incentivado pela dupla, Jô decidiu fazer a viagem pelo seu tempo.
Eram tantas histórias que só era possível publicar dois volumes. Afinal, mesmo tratando desde o nascimento do apresentador, em 1938, até o final da década de 1960, o primeiro livro é repleto de histórias incríveis, muitas esquecidas e resgatadas graças à prodigiosa memória de Jô e ao afinco de Matinas e sua equipe em pesquisar todos os detalhes. E não foi pouca coisa – José Eugênio Soares não apenas testemunhou momentos determinantes da cultura brasileira como fez parte de boa parte deles.
“Sou a soma do que devo aos meus pais, Mercedes e Orlando, e também aos meus amigos”, contou ele. “O livro é fruto do conjunto desses encontros.” E são tantas as histórias que o repórter brincou com o apresentador, tratando-o como o Forrest Gump brasileiro, referência ao personagem (vivido por Tom Hanks no cinema) que presenciou os fatos mais importantes dos EUA. “Sim”, concordou, para arrematar com um largo sorriso: “Mas um Forrest consciente”.
Educação humanista
Filho único de pais de espírito livre, Jô recebeu uma educação humanista, voltada para as artes. Vivendo no Rio de Janeiro, acompanhou a trágica final da Copa de 1950, no Maracanã. Passou uma temporada em Nova York e estudou em colégio interno suíço, período em que acompanhou outro Mundial de futebol, o de 1954, e também desenvolveu o pendor para a música (jazz, em especial), as artes visuais (é fã, entre outras, da Pop Art) e a habilidade com o humor.
“Sempre fui um menino atrevido, que não se envergonhava em puxar conversa com celebridades”, lembrou ele. Em um desses momentos, ele conseguiu conhecer o ateliê do pintor americano Roy Lichtenstein (1923-1997), um dos papas da arte moderna. “Adoro sua obra e, uma vez em Nova York, procurei seu nome na lista telefônica, liguei e ele foi muito gentil ao me receber”, relembrou.
O primeiro volume resgata, portanto, momentos marcantes da vida e da carreira do apresentador, desde a infância vivida no Anexo do Copacabana Palace até a chegada na televisão, onde conviveu com nomes lendários como Silveira Sampaio e Nilton Travesso, sem se esquecer de locais famosos, como o Nick-Bar, ao lado do Teatro Brasileiro de Comédia, ou o Gigetto, em seu primeiro endereço, em frente ao Cultura Artística.
“As lembranças mexeram com ele”, contou Matinas ao Estadão. “Muitas vezes, além de chorar, Jô interrompia a conversa para telefonar para a pessoa da qual falávamos.” Dois momentos sempre provocaram as lágrimas do apresentador: a lembrança do filho, Rafael, que tinha autismo e morreu em 2014, aos 51 anos, de câncer, e da mãe, Mercedes, que foi atropelada por um táxi, no Rio de Janeiro, em 1968.
E, se o primeiro volume da biografia é marcado por detalhes de sua formação como homem e artista, o segundo, apesar de cobrir o período mais importante de sua vida (a chegada à Globo, a perseguição da censura militar, a consagração como humorista e a opção por se tornar entrevistador), é recheado de fatos que provavelmente apenas amigos mais próximos sabiam.
Como sua religiosidade, intensificada por influência da primeira mulher, a atriz Theresa Austregésilo, e pelas dificuldades que ambos passaram com o filho, Rafael, que nasceu com autismo. “Eu não tinha formação espiritual tão intensa, mas fui sendo influenciado por Theresa, e as dificuldades iniciais com o Rafinha nos aproximaram ainda mais nesse sentido”, escreveu Jô. Por conta disso, o humorista fez o Cursilho, um processo de evangelização, que o fez rever a própria fé. Isso o aproximou de diversos religiosos, entre eles, D. Hélder Câmara (1909-1999), arcebispo emérito de Olinda e do Recife e grande defensor dos direitos humanos durante a ditadura militar.
Ele contava que, como era ministro da Eucaristia, pediu ao padre para que o ajudasse, em uma certa missa, a distribuir a hóstia sagrada. Curiosamente, a fila para receber a oferenda das mãos do humorista era maior. “Você está fazendo uma concorrência muito grande, desviando meus fiéis”, divertiu-se D. Hélder.
Parcerias
O livro destaca também a importância de vários parceiros em sua carreira. “Para quem trabalha com humor, o sucesso começa com o parceiro, que deve ser o primeiro a achar graça”, ensinava ele, que dividiu a cena com talentos como Paulo Silvino, Agildo Ribeiro, Eliezer Motta, entre outros. “Silvino era maluco no bom sentido, sempre disposto a fazer brincadeiras no camarim. Já o Agildo era um humorista imbatível: engraçadíssimo, sabia como poucos o tempo do humor.”
Jô também homenageia Max Nunes, médico que se tornou um dos maiores escritores humoristas do País. Juntos, criaram personagens clássicos como Norminha, a cantora suburbana em busca da fama, a atriz pornô Bo Francineide e o dr. Sardinha, ministro inspirado em Delfim Netto. Criaram também bordões logo adotados pela população, como “O macaco tá certo”. Nunes também alertava Jô a deixar de andar de moto, que lhe provocou dois acidentes. “Se há algo que me arrependo na vida, foi não ter parado antes”, contava ele.