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Lazer e CulturaLygia Fagundes Telles defendia o artesanato artístico

Lygia Fagundes Telles defendia o artesanato artístico

Lygia Fagundes Telles defendia o artesanato artístico

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No dia 25 de janeiro de 1977, a escritora Lygia Fagundes Telles viaja a Brasília para entregar a Armando Falcão, ministro da Justiça, um manifesto assinado por 1.046 intelectuais e artistas brasileiros. Está acompanhada da colega Nélida Piñon e do historiador Hélio Silva. No documento, pede-se o fim das restrições à liberdade de expressão e dos constrangimentos na criação artística.

Estamos em pleno regime Geisel e, nos bastidores do Planalto, sova-se o Pacote de Abril, a ser imposto à nação por decreto. O ministro se mostra indiferente ao teor reivindicativo do manifesto e afirma que, “com serenidade e firmeza”, manterá o exercício da censura. Poucos conhecem essa faceta pública da notável ficcionista paulista, que morreu no domingo, 3, aos 98 anos.

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No Rio, Carlos Drummond de Andrade lê os jornais do dia e por eles espreita os passos atrevidos de Lygia. Em carta datada de 16 de fevereiro, o amigo e admirador felicita-a pela coragem: “Estou acompanhando pelos jornais o movimento desencadeado pelos escritores e artistas, no qual você desempenha um papel de responsabilidade consciente, indo a Brasília para entregar o papel à fera”.

Opinião

Em seguida, o mineiro matreiro matiza o ceticismo que lhe é proverbial (o poeta se abstivera de assinar o documento): “Era de se prever que o documento não modificasse a atitude do governo, mas um resultado positivo se alcançou: ele se sentiu obrigado a explicar-se, percebeu a importância do pronunciamento e pela primeira vez reconheceu a existência de uma opinião de classe contrária à censura”.

Naquele início de ano, Drummond também acompanha a imagem de Lygia na telinha. Ouve suas palavras e, reminiscente das artimanhas do velho DIP, percebe o uso pelo arbítrio da tesoura e da mordaça. Ao final da carta citada, lamenta o exercício impune da serenidade e firmeza ministerial: “Incrível a mutilação do seu programa no Globo Repórter!” E acrescenta: “Mesmo assim, o que sobrou deu para se divulgarem algumas verdades. Gostei. E ver você na TV é uma maneira de matar saudades”.

Num século em que com frequência o gosto pela política na madureza asfixia o encanto juvenil pelas artes, é extraordinário que a destemida mensageira da classe seja defensora do artesanato artístico e uma apaixonada da arte literária. Com obra ficcional admirada pelos pares e pelas novas gerações, Lygia foi quem melhor soube se comunicar em público com o curioso das coisas literárias.

Paixão

Posso atestar que, em auditórios localizados nos quatro cantos do País e do mundo, sua presença física era luminosa e suas palavras, apesar de rigorosas e valentes, eram apreendidas e sorvidas com espanto e deleite em virtude da paixão que as sustem. Ao microfone ou em entrevista, não se escondia em evasivas. Oferecia a espinhosa receita da iguaria que oferece: “Ler, ler, ler. Escrever, escrever, escrever, e rasgar muito. Eu rasguei muito”. E, fincada nos mitos do dia, aconselhava aos aspirantes ao estrelato: “Se você pretende ser dançarina, ou se você quiser ser a ginasta Daiane dos Santos, vai ter que trabalhar muito”.

À participante política e defensora do trabalho de arte se somava a intelectual que reconhecia o caráter discricionário do “chamado à literatura”. Da perspectiva de quem quer ser autor, repetia, “escrever é uma vocação”. Manifestação obscura da humildade e da esperança humanas, a vocação abre e acelera o mistério que une o caráter do escritor e suas palavras à sensibilidade e à mente do leitor. “Se não houvesse leitores, ainda assim você escreveria?”, perguntou-lhe Edla Van Steen em 1981. Lygia rebate. O leitor e seu compromisso com a boa literatura são cria do estofo do escritor, do seu sangue. Explica-se: “Se o autor está oco ou desesperado, não vai conseguir a cumplicidade do seu próximo. Fará um trabalho esvaziado, morno”.

Espírito

Lygia se perfila com Nietzsche. No capítulo Ler e Escrever, de Assim falava Zaratustra, está dito: “De tudo o que se escreve só gosto daquilo que se escreve com o próprio sangue. Escreve com o teu sangue e descobrirás que o sangue é espírito”.

Ainda sobra alguma tinta na paleta do retratista, e não servirá para emprestar colorido apenas circunstancial à figura humana, embora assim se goste de creditá-lo. Lygia era mulher que, em sociedade patriarcal, adotava três profissões de homem. Advogada, escritora e membro da Academia Brasileira de Letras. Modesta, a promotora pública destacava a preeminência das primeiras escritoras, elas sim, “verdadeiras malditas a arrebentarem seus espartilhos”.

Perspicaz, a artista de sucesso lembrava como se desgastou o tópico crítico que julgava a escritora brasileira narcisista, preocupada com a própria face, com o umbigo. O desgaste do desdém crítico já transparece nas leituras consagradoras de Ciranda de Pedra (1954) e não se justifica por a romancista ter adotado uma escrita objetiva, tradicionalmente masculina, mas por ela ter ido até às raízes históricas do patriarcalismo e por nelas ter encontrado “a razão do feitio monologal e intimista” da escrita feminina.

As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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