WASHINGTON, EUA (FOLHAPRESS) – Uma das melhores descrições do romance “O Mapa de Sal e Estrelas” aparece dentro do próprio livro, nas palavras de um personagem. Uma mãe diz à filha: “Você precisa tecer duas histórias juntas para contar ambas direito”. Para ilustrar, ela junta as palmas das mãos e depois as separa.
É o que o escritor sírio-americano Zeyn Joukhadar faz, costurando duas narrativas em uma só. A primeira é a da garota americana Nur, que habita o século 21. A segunda é a de Rawiya, uma jovem marroquina–só que no século 12. Apesar de quase um milênio separar as protagonistas, logo fica evidente no texto que as palmas delas se encostam.
Nur nasceu nos Estados Unidos em uma família de imigrantes sírios. Ela se mudou para Homs, na Síria, depois da morte do pai. Sua chegada coincide com a guerra civil iniciada em 2011, que destrói sua casa e força sua família a se refugiar em países próximos, como a Jordânia.
Rawiya, por sua vez, nasceu do outro lado do oceano, no que é hoje o Marrocos. Inquieta e curiosa, uniu-se à expedição do legendário cartógrafo Muhammad al-Idrisi. A missão da trupe é mapear a região leste do Mediterrâneo, coletando informações para o rei Rogério da Sicília.
Nur e Rawiya caminham nas mesmas paisagens. Suas histórias vazam uma em cima da outra. Nur encontra, por exemplo, a pedra roxo-esverdeada que Rawiya havia perdido séculos antes. As duas garotas passam por cidades como Homs e Damasco, na Síria, descrevendo sua arquitetura em tempos distintos.
Mais do que a coincidência geográfica, porém, Nur e Rawiya têm algo em comum: são duas mulheres em formação, fortes. Têm de sobreviver em um mundo em movimento, habitado por migrantes, refugiados e andarilhos, em que cruzar a fronteira errada pode significar a morte.
A história de Nur, em particular, é um dos trunfos de Joukhadar em “O Mapa de Sal e Estrelas”. O autor consegue fazer algo que os jornais raramente conseguem: criar empatia. Uma coisa é saber que a guerra na Síria já obrigou milhões de pessoas a deixar suas casas. Outra coisa bastante distinta é ver isso acontecer com um personagem cativante, ser torturado por seus pensamentos.
O fato de que a narradora é uma criança ajuda a criar essa proximidade. Nur pena para entender o que está acontecendo na Síria, fazendo as perguntas que os adultos já deixaram de fazer–apesar de tampouco terem resposta. As descrições delas são também de uma sutileza só.
Nur fala dos bombardeios como se fossem uma espécie de trovão, ou seja, algo que é “assustador se você pensar demais a respeito, mas não algo que atingiria sua casa”. Quando o bombardeio por fim acerta sua residência, ela lamenta a vida das polaroides que retratam lugares que já não existem mais.
Um detalhe curioso, que quase se perde entre as histórias entrelaçadas, é que Nur ouve em cores–uma condição médica conhecida como sinestesia. Em determinados trechos, isso embeleza o texto, como quando Nur descreve a voz de um personagem como “arremetidas verdes, os pontos pretos das consoantes em meio a elas”.
Em outras passagens, porém, fica cansativo tentar entender o que afinal esses artifícios literários descrevem. Nur fala de uma aglomeração que “estoura em gritos de ameixa”. Fica a cargo do leitor imaginar os tais berros de fruta.
De todo modo, é um livro excepcional, em especial para quem se interessa pela história e política do mundo de cultura árabe e para quem se sensibiliza com o drama dos migrantes e refugiados. Tomando emprestada a fala de outra personagem: “histórias mapeiam a alma, disfarçadas de palavras”. Joukhadar desenha, assim, um detalhado mapa. É um cartógrafo, como o de seu livro.
O MAPA DE SAL E ESTRELAS
Preço R$ 64,90 (368 págs.)
Autor Zeyn Joukhadar
Editora Dublinense
Tradução Carol Chiovatto
Avaliação Muito bom