SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Não há registros de que Maria Martins tenha posto os pés na Amazônia. Mas bastou uma viagem de avião e a vista área de rios serpenteados para a artista voltar sua produção de esculturas para mitologias e histórias contadas sobre as florestas na década de 1930.
A mais mítica exposição da escultora, quando ela dividiu a galeria Valentine em Nova York com ninguém menos que Mondrian, em 1943, foi uma reunião justamente das peças inspiradas nessas histórias amazônicas, como a da cobra-grande que enreda a mulher mais bonita da floresta para a coroar como rainha.
De alguma maneira, ela criava um universo novo a partir de imaginários da Amazônia que circulavam naquela época. Ao rever essas narrativas, Maria Martins também começava a arquitetar um conjunto de criaturas que flertaria cada vez mais com a abstração e que se tornaria uma espécie de mitologia própria da artista. Eram as “minhas deusas” ou os “meus monstros”, como ela definiu depois.
Esse corpo escultórico erótico, feminino e também visceral é revisto na exposição “Maria Martins: Desejo Imaginante”, que abre nesta semana no Masp, com 45 peças, entre esculturas, gravuras e pinturas da artista produzidas entre as décadas de 1940 e 1950.
O casamento de Maria de Lourdes Faria Alves com o embaixador Carlos Martins Pereira e Sousa foi importante para que Martins circulasse por espaços decisivos na sua vida como artista. Criou também quase uma dupla identidade –a “Maria” assinava as esculturas, a “Maria Martins”, com o sobrenome do segundo marido, circulava pelos jantares e eventos oficiais.
Onde essas duas personalidades parecem mais se encontrar é no papel de Maria Martins como uma articuladora cultural, apresentado em documentos nas primeiras vitrines da mostra.
“Ela acabou usando a posição de embaixatriz para fazer com que os trabalhos de artistas brasileiros circulassem fora do país e que obras estrangeiras viessem para cá”, afirma a organizadora do mostra, Isabella Rjeille. “Maria foi fundamental nas três primeiras bienais de São Paulo, atuou de maneira muito incisiva nos bastidores. Ela chegou a ir até à casa do Picasso e pedir uma obra dele para trazer cá.”
Mas, entre a sua vida como embaixatriz e como artista, documentos da exposição também mostram que era a arte era sua carreira, e não seu hobby, como parte da crítica da década de 1940 e 1950 insinuou.
Numa entrevista que Martins deu em 1968 a Clarice Lispector, com quem compartilhava o fato de ser casada com um diplomata brasileiro, ela diz que ficava trancada no ateliê das nove horas da manhã até o fim da tarde. No maior período do seu dia, descrevia ela, suas preocupações eram só a respeito de forma e de volume.
Já estão nas primeiras peças da artista, apresentadas na ala chamada “Imaginários Amazônicos”, relações complexas entre figuras masculinas e femininas, que flertam com o desejo e com a violência no mesmo ato. Além dos elementos de histórias de povos originários, há também os da cultura afro-brasileira.
O homem que se transforma em pássaro para conquistar a amada pelo canto, o Uirapiru, é construído num formato que parece fazer o bronze todo vibrar, num movimento que deve se originar da pequena flauta da boca do animal. É um chamado à sedução, mas que tem por objetivo final matar a amada.
“Todo o trabalho dela se articula em torno dessas complexidades das relações humanas e não humanas também. A Maria tem, em seu trabalho, as figuras que são antropomórficas, que se confundem com vegetais, por exemplo. A gente não consegue atribuir a natureza daquele tipo de figura sempre”, diz Rjeille.
Nas formas já um pouco maiores de bronze, os corpos femininos se formam nesse processo metamorfoseado. A liana, essa planta das florestas tropicais que lembra um cipó, estrutura fisicamente uma mulher de seios fartos –característica, aliás, que marca parte do erotismo e de uma ideia de feminino que atravessa a obra da escultora.
De novo, é uma planta que é capaz de abraçar uma árvore, e de a sufocar. Essa imagem do cipó também se repete num desenho, mas ali há uma figura que parece perdida entre os limites do próprio corpo, se desfazendo ou se enrolando nela própria.
“Nem sempre essa dominação é uma ameaça externa”, afirma a curadora. “Ela também põe isso como questões internas de seus próprios personagens.”
“O Impossível”, uma das obras mais icônicas de Maria Martins, aprofunda a batalha entre dependência e repulsão, vínculo e estranhamento –e três dos “Impossíveis”, de bronze e diferentes entre eles, estão na mostra.
Duas figuras côncavas, uma feminina com os seios marcados ou até com uma fenda no ventre, e outra masculina, têm suas cabeças formadas por formas pontiagudas, que lembram tentáculos e miram em direção ao outro como se houvesse uma atração inevitável. É uma união que nunca se concretiza, no entanto, com essas figuras que não se encaixam e parecem na eminência de se chocar.
Essas figuras indefinidas de Maria Martins compõem um universo mitológico próprio da artista, que estão costuradas na última sala da exposição “Mitologias Pessoais”. É no poema “Explicação”, do fim dos anos 1940, que Maria traz essa ideia de suas deusas e seus monstros.
Está nesse fim da mostra o “Não Se Esqueça que Eu Venho dos Trópicos”, obra que Martins faz depois de uma crítica de Edward Alden Jewell, publicada no jornal The New York Times, em que ele avalia que Martins parecia ter se livrado dos trópicos após ficar marcada como a “escultora dos trópicos”.
“Nessa escultura, não há um elemento que você consiga identificar como algo tropical. Naquele momento, nos anos 1940, não há nessa obra os trópicos exóticos, alegres, encantadores que existiam em outros trabalhos”, diz a curadora da mostra. É uma textura bruta, cheia de hachuras, que reveste a criatura alada, de seios fartos, pouco identificável enquanto bicho e enquanto gente.
Segundo ela, Martins subverte naquele momento a ideia que se tinha dos trópicos e revela uma leitura ficcional que se tinha do sul da fronteira. Como sua própria mitologia pessoal, os trópicos são uma grande ficção.
É a escultura de uma mulher esguia que fecha essa ala. Uma cobra –outra figura recorrente nas esculturas de Martins– sai da base da peça e enrola as pernas daquela figura. Na cabeça da mulher, porém, asas se abrem e sugerem a liberdade como premissa para a artista.
A liberdade também define uma das relações mais emblemáticas da vida da escultora, a com o francês Marcel Duchamp. Ela participou da Exposição Internacional do Surrealismo em 1947, que foi feita em parceria entre André Breton e Duchamp, com quem manteve um relacionamento até voltar para o Brasil, nos anos 1950.
O diálogo intenso entre os dois artistas, aliás, deu origem à famosa “Étant Donnés”, obra secreta do francês em que Martins aparece como a grande musa.
Na mesma entrevista que Martins deu no fim da vida a Lispector, a escritora perguntou à escultora qual destino ela escolheria ter caso pudesse começar sua vida do zero. “Eu seria uma artista como sou, livre e libertada”, respondeu.
MARIA MARTINS: DESEJO IMAGINANTE
Quando: De 27/8 a 30/1. Ter.: 10h às 18h. Qua. a sex.: 12h às 18h. Sáb. e dom.: 10h às 18h
Onde: No Masp – av. Paulista, 1578, SP
Preço: R$ 45. Entrada gratuita às terças