RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Amir Haddad anda repetindo muito o termo “presencial”. Na cobertura onde mora em Santa Teresa, no Rio de Janeiro, com vista para a baía da Guanabara, o diretor -que faz 84 anos nesta sexta-feira- expõe o mais básico das palavras em duas horas de conversa.
“Teatro virtual não existe, é igual a sexo por telefone, vai contra a natureza. Não sou um voyeur, se tem uma suruba rolando eu caio dentro.”
Fundador e diretor do grupo Tá Na Rua desde 1980 -a companhia ganhou o título de patrimônio imaterial do estado do Rio de Janeiro em 2010-, Haddad está há um ano e meio impedido de levar sua arte para os espaços públicos, tendo sua residência como local de trabalho e refúgio. A cena do artista com o microfone na mão conduzindo uma trupe de atores por ruas e praças vai ficar para depois.
“A humanidade ainda está vivendo uma situação de coito interrompido, como se alguém batesse violentamente à porta na hora H”, diz o diretor. Em razão da pandemia, ele viu esvaziar a festa dos 40 anos do Tá Na Rua. “Foi um coitão e acabamos virando uns coitados.”
Na banheira ao som de Billie Holliday, ele posa relaxado para um ensaio e, com uma taça de vinho tinto em punho, anuncia para agosto uma curta temporada, e virtual, de “Assim Falou Zaratustra”, ao lado de sua colaboradora dramatúrgica Viviane Mosé. A filósofa e psicanalista é uma espécie de “tradutora” dos pensamentos de Nietzsche na sociedade contemporânea e peça fundamental para esta desmontagem que Haddad chama de pós-teatro.
“É um espetáculo que venho fazendo desde 2018, já apresentei pedaços no Instagram, contrariando minhas convicções”, afirma o diretor que, assim como Zaratustra, “só acreditaria num Deus que soubesse dançar”.
Fora da banheira, vestindo camisa azul, gorro na cabeça e chinelo, o homem de 1,70 metro e 85 quilos anda com cuidado, mas com propulsão, que é a maneira como ele fala também. Haddad mantém velhos hábitos, como de se autodirigir.
“O meu trabalho é muito mais resistência do que proposição. O Tá Na Rua reforça isso, nasceu da ditadura, é filho da repressão, rebelde do governo Médici.”
Seus olhos castanhos se estreitam em fatias de contemplação, como os de um gato. Mineiro de Guaxupé, ele liderou grupos alternativos a partir dos anos 1970 pesquisando e buscando a disposição não convencional da cena em espaços abertos, o ápice da interação entre atores e espectadores. “A vida inteira trabalhei com grupos. O teatro é uma arte coletiva.”
Em São Paulo, se juntou a José Celso Martinez Corrêa e Renato Borghi na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo para fundar o Teatro Oficina em 1959. “Minha vida no teatro começou no Oficina, um grupo que virou ideia fixa e obsessiva”, ressalta. “Minhas origens paulistanas são muito fortes. Fomos atraídos por essa fonte inesgotável de desejos. Éramos muito ligados ao teatro francês, em especial uma companhia chamada L’Atelier, traduzida por Oficina.”
O primeiro espetáculo do grupo foi “Vento Forte para um Papagaio Subir”, de Zé Celso, seguido de “A Incubadeira”, que foi um enorme sucesso de público e crítica. Em 1960, Haddad se mudou para Belém, onde fundou e deu aulas na Escola de Teatro na capital paraense, primeira instituição com esta finalidade na Amazônia.
“Eu achava que São Paulo era o Brasil, chegando ao Norte que eu entendi a dimensão deste país. Lá criamos o ‘Auto do Círio de Nazaré’, que saía à rua uma noite antes da procissão religiosa”.
No Rio desde 1965 -para assumir o Teatro da Universidade Católica e, posteriormente, o Teatro Universitário Carioca-, Amir Haddad intensificou sua busca em recuperar o sentido das festas populares. “Meu trabalho se sustenta no tripé Carnaval, futebol e cultura religiosa. Eu bebo nessa fonte inesgotável de formação que o Brasil tem de espetáculos populares.”
Com mais de 400 peças em 70 anos de teatro, Amir Haddad adotou um lema para manter a sanidade. “O teatro é o lugar da saúde!”, ele afirma.
Atualmente, o diretor vem ensaiando, de forma virtual, uma peça sobre Virginia Woolf com Cláudia Abreu, diretamente de Lisboa, que sugeriu o tema. “Ela adora Virginia, lê e entende bastante”, diz Haddad que, em 2017, dirigiu Andréa Beltrão numa adaptação sua de “Antígona”, de Sófocles. Entre as suas favoritas também estão Renata Sorrah -“foi trazida para o teatro por mim”- e Camila Amado, morta em junho. “Sou igual ao Dionísio, arrasto as mulheres como um bando de bacantes.”
É difícil pensar em outro diretor com um corpo de trabalho que, aos 84 anos, tenha sido tão singular em sua multiplicidade. Com plena consciência da carreira de extraordinária riqueza e longevidade, Haddad ultimamente só liga a TV para ver canais esportivos ou de outros países.
Sobre passar o tempo em casa à espera de voltar às ruas, ele faz um rápido resumo. “Tive que aumentar muito meu nível de masturbação e ceder ao laptop, aprendi o mínimo necessário.”