SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Não é de hoje que governadores de vários estados do país recebem sinais de alerta quanto à contaminação de suas polícias pelo discurso golpista do presidente Jair Bolsonaro, que sempre acenou para a categoria -ainda que, na prática, nada tenha entregado a ela para além de elogios.
No ato mais estridente de uma leva de insubordinações que atravessa vários estados governados por opositores do presidente, o coronel Aleksander Lacerda, agora ex-comandante de sete batalhões da PM no interior de São Paulo, usou as redes sociais para uma convocatória ao ato bolsonarista de 7 de setembro na avenida Paulista.
Outra de suas postagens mirava o próprio governador João Doria (PSDB), seu chefe, a quem chamou de “cepa indiana”.
Ao afastar o coronel do comando de uma tropa composta por cerca de 5.000 policiais, o governador paulista fez uso exemplar da caneta que lhe foi concedida pelo voto popular e que o colocou na posição de comandante em chefe da maior corporação policial do país.
Vale lembrar: o Regimento Disciplinar da Polícia Militar de São Paulo determina que policiais da ativa não podem participar de manifestação de caráter político-partidário e aponta como falta grave referir-se a superior de forma desrespeitosa.
“São Paulo tem orgulho da sua Polícia Militar, a mais bem treinada do Brasil. Indisciplina não será admitida na PM, que respeita suas regras e suas funções”, disse Doria à Folha de S.Paulo nesta segunda-feira (23).
Estudiosos da segurança pública brasileira apontam há anos para o problema de governança das forças policiais do país. Ele passa pela transposição de regramentos de organização e de controle das polícias diretamente dos tempos da ditadura militar (1964-1985) para a nova era democrática. Exemplares dessa história são os intocados artigos 142 e 144 da Constituição, que até hoje aguardam regulamentação.
Essa crise de governança, no entanto, passa também pela omissão de governadores no comando e controle das corporações, preferindo a figuração e a acomodação de interesses aos conflitos e responsabilidades intrínsecos à posição de liderança de uma instituição que tem o monopólio do uso da força, inclusive letal. Não há Estado democrático de Direito possível sem mandato, regulação e transparência de corporações dotadas de tamanho poder.
“O comandante em chefe da polícia se chama governador. Ele pode escolher não exercer esse comando, mas essa é uma escolha errada porque vai torná-lo refém em seu gabinete”, já disse a professora do Departamento de Segurança Pública da UFF (Universidade Federal Fluminense) Jacqueline Muniz. Ela adverte que, sem esse comando, as forças policiais se autonomizam e que o extremo desse movimento gera o que chamamos de milícia.
No calor das recentes manifestações de indisciplina de parcelas radicalizadas das polícias, alguns governadores resolveram também pegar na caneta para exercer a função de comando das tropas.
Esse movimento de insubordinação começou com o motim da PM cearense, em fevereiro de 2020, em oposição ao governador Camilo Santana (PT), que culminou com o senador Cid Gomes (PDT-CE) alvejado com dois tiros ao pilotar uma retroescavadeira em direção à barricada erguida por policiais encapuzados em frente a um batalhão.
Os atos foram saudados por Bolsonaro e elogiados pelo comandante da Força Nacional, Aginaldo de Oliveira, enquanto os homicídios no estado explodiam mais de 400% em relação ao mesmo período do ano anterior. Trata-se de uma das muitas facetas do que se convencionou chamar de necropolítica.
No Recife, policiais militares abusaram do uso da força durante repressão a um ato contra Bolsonaro em que dois homens foram atingidos por balas de borracha e ficaram cegos de um olho. Os agentes acabaram afastados pelo governador Paulo Câmara (PSB).
Em Alagoas, foi exonerado o subcomandante de policiamento da capital, o tenente-coronel Marcos Vanderlei, que exaltava Bolsonaro, com quem ostentava a fotografia de um abraço, enquanto atacava o governador Renan Filho (MDB), filho do senador Renan Calheiros (MDB-AL), relator da CPI que investiga a atuação do governo no enfrentamento da pandemia.
Agora, os holofotes atraídos para a medida adotada por Doria levantam duas questões urgentes no que diz respeito às insurreições de policiais, isolados ou em grupo.
A primeira diz respeito à estruturação e ao grau de disciplina das corporações policiais, que é bastante heterogêneo no país. A Polícia Militar de São Paulo é reconhecida como aquela de maior institucionalidade do Brasil. Portanto, se um comandante da PM paulista se sente à vontade para desafiar seu regramento disciplinar, o que esperar das cadeias de comando de outras PMs menos organizadas?
O governador paulista deu seu recado às tropas do seu estado. Falta combinar com as corporações dos outros.
A segunda questão parte do caráter excepcional deste tipo de expediente por parte dos governos estaduais, o que pode fazer a canetada sair rasurada. Para que tenha efeito, já apontou o coronel da reserva José Vicente da Silva, essa medida precisa ser antecedida e sucedida de um trabalho de inteligência que mapeie o grau de adesão das tropas à politização bolsonarista.
Do contrário, o governo pode não detectar a tempo alguma movimentação maior e precisar de remédios mais amargos para contê-las. “Esse coronel não postou tudo isso anteontem”, alerta José Vicente, evidenciando as falhas que existem neste tipo de monitoramento.