SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Nos últimos dias, o acampamento “Luta pela Vida”, que concentra na esplanada dos ministérios mais de 6.00o indígenas, segundo a Associação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib), ganhou reforço internacional, como o do ativista indígena norte-americano Nick Estes.
Líder da tribo sioux, que reúne povos das etnias dakota e lakota no centro-oeste dos Estados Unidos, Nick Estes é professor da Universidade do Novo México e integrou uma delegação da Internacional Progressista (IP), entidade que reúne lideranças globais da esquerda.
A IP tem apoiadores tão heterogêneos quanto o senador americano Bernie, o filósofo camaronês Achille Mbembe, o ator mexicano Gabriel Garcia Bernal, a jornalista canadense Naomi Klein e o guitarrista da banda Rage Against the Machine, Tom Morello.
A entidade enviou delegação ao Brasil para acompanhar as votações de projetos de interesse dos povos originários na Câmara, como o PL 490/2007, e o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) que afeta a demarcação de terras indígenas -o chamado “marco temporal”, previsto para começar nesta quarta-feira (25).
Em julho passado, a entidade recebeu uma carta da Apib que denunciava o projeto da Ferrogrão, ferrovia que pretende ligar Mato Grosso ao Pará para escoamento da produção de grãos que atravessaria áreas de preservação e é uma das vitrines do governo de Jair Bolsonaro (sem partido).
“O projeto da Ferrogrão só pode ser comparado a catástrofes humanitárias e ambientais como a rodovia Transamazônica e a usina hidrelétrica de Belo Monte”, escreveu a entidade indígena à Apib.
O líder sioux, que fundou o movimento indígena The Red Nation, tem ampla experiência nesse tipo de enfrentamento.
Em 2016, Nick Estes, 35, foi um dos articuladores da ocupação da reserva de Standing Rock, em Dakota do Norte, contra as obras de um oleoduto que havia sido barrado por Barack Obama, mas reabilitado por Donald Trump.
“Nosso movimento não obteve vitória naquela ocasião, mas foi bem-sucedido em reunir diferentes comunidades indígenas num esforço comum, cujos efeitos reverberaram em outras lutas e vitórias, como aquela contra o projeto do oleoduto Keystone XL, cancelado oficialmente pela gestão Biden.”
Depois de uma agenda de encontros com líderes sociais brasileiros, de visitas a comunidades indígenas e quilombolas afetadas por projetos da agroindústria e de reuniões com partidos e políticos, ele conversou com a reportagem sobre as ameaças à agenda de direitos indígenas e sobre as semelhanças entre EUA e Brasil nesse campo.
Para ele, a grande ameaça aos direitos dos povos originários emana da extrema direita global.
“Organizações como a Apib precisam colocar suas lutas em plataformas internacionais e se conectar com outros movimentos progressistas. O presidente brasileiro está articulado com uma rede de utradireitistas, neonazistas e fascistas organizados globalmente. Então, precisamos também nos organizar, não em um antagonismo cínico, mas para oferecermos propostas e projetos reais para a vida na Terra.”
PERGUNTA – Como você avalia a situação das populações indígenas brasileiras neste momento?
NICK ESTES – Minha primeira impressão é a de que os ataques a terras indígenas e a comunidades quilombolas no Brasil de hoje não têm precedentes na história moderna. E esses ataques não afetam apenas pessoas negras e indígenas dessas comunidades, mas o país como um todo.
E, claro, o ataque à Amazônia afeta o mundo todo porque é um recurso vital não apenas para o Brasil mas o clima de todo o planeta. A meu ver, a informação de que a Amazônia passou de um ecossistema que absorve carbono para um ecossistema que emite carbono, por conta do desmatamento e das queimadas, é um pesadelo.
Bolsonaro está para as comunidades indígenas do Brasil assim como Trump está para as dos EUA?
NE – Na verdade, Bolsonaro já elogiou a política indianista norte-americana ao dizer, em 1998, que a cavalaria dos EUA é que tinha feito um bom trabalho ao dizimar os índios de seu território e por isso agora não tinham problemas com demarcação de terras [o presidente ponderou, em seguida, que não pregava que o mesmo fosse feito com os indígenas brasileiros hoje].
E eu diria que as políticas que ele está implementando ou tentando implementar, de privatização, de retrocesso no marco temporal, de limitações nas demarcações de terras, foram políticas que os americanos implementaram nos século 19. Foi quando os governos armaram a população de colonos e forneceram gado para que eles tomassem posse das terras indígenas e as defendessem. É mais ou menos o que acontece agora com o pessoal ligado à chamada BBB: bala, boi e Bíblia.
Há ainda paralelos em relação ao agrobusiness. Empresas como a Cargill, baseada em Minnesota, têm conexões não apenas com a privatização de largas faixas de terra para agricultura industrial. E aqui essas empresas são também as engrenagens econômicas da direita e do governo Bolsonaro para justificar o desmatamento de terras e as queimadas da floresta.
Que tipo de instrumento os povos indígenas têm para se contrapor ao poder do agronegócio, do capital financeiro, do garimpo e do próprio Estado?
NE – Aprendi que existe proteção na própria Constituição Federal do Brasil de 1988. E há também a convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho [OIT] que determina em seu artigo 6º que os povos precisam ser consultados sobre medidas legislativas ou administrativas que os afetem.
E consultá-los significa sentar à mesa com eles e deixá-los responder “sim” ou “não” sobre o que vai ser feito em suas terras e em projetos de desenvolvimento que os afetem. Grupos indígenas também estão levando Bolsonaro para o Tribunal Penal Internacional sob a acusação de genocídio e ecocídio.
Você foi uma das lideranças da ocupação da terra indígena de Standing Rock, que reuniu várias comunidades na tentativa de impedir a instalação de um oleoduto barrado por Obama e liberado por Trump. Qual é a importância deste tipo de mobilização?
NE – Nosso movimento não obteve vitória naquela ocasião, mas foi bem-sucedido em reunir diferentes comunidades indígenas num esforço comum, cujos efeitos reverberaram em outras lutas e vitórias, como aquela contra o projeto do oleoduto Keystone XL, cancelado oficialmente pela gestão Biden.
Agora, estamos lutando contra o oleoduto Line 3, que deve atravessar o estado de Minnesota e que está sendo construído por uma companhia canadense. Biden ainda não sinalizou sobre o cancelamento desse oleoduto. Então, estamos nessa posição em que derrotamos um inimigo, Donald Trump, mas já estamos protestando contra o novo governo, de Biden.
Como responder à crítica comum de que essas reivindicações atravancam projetos de desenvolvimento?
NE – Os projetos de infraestrutura são constituídos a partir da ideia de que eles almejam um bem social. E você tem que ter concordância dos vários grupos para fazer esse tipo de afirmação. Se determinado grupo, justamente aquele que está sendo mais impactado, se opõe ao projeto porque o prejudica, é porque o projeto não vai beneficiar a sociedade e o país como um todo. Ninguém é contra o desenvolvimento, mas queremos mudar o que entendemos por desenvolvimento.
No caso dos EUA, não se trata de pensar que reservas não precisam de estradas, elas precisam. Mas não se trata de sacrificar o meio ambiente para viver de maneira mais confortável, mas sobre o que entendemos por viver uma vida digna. Não deveríamos priorizar acesso a moradia? Acesso a água limpa? A saúde? É para essas coisas que precisamos de desenvolvimento.
Então estamos falando de um reenquadramento das prioridades e das necessidades das pessoas, versus empurrar algo pra cima das pessoas, quando são elas que estão arcando com os maiores riscos dessa empreitada e sofrendo os maiores sacrifícios.
O que permitiu a articulação de diferentes grupos em torno de pautas comuns nos EUA?
NE – Os sucessos em unificar as pessoas foi que extrapolamos as comunidades indígenas e buscamos aliados no movimento de trabalhadores, no Black Lives Matter [BLM] e em outros movimentos sociais. E isso transformou algo local num fenômeno amplificado e até global.
Qual o potencial para esse tipo de articulação no Brasil?
NE – É enorme. Primeiro porque é preciso levar em consideração que 68% das pessoas que vivem na Amazônia são afrobrasileiras, e elas estão sendo atingidas pelas medidas do regime de Jair Bolsonaro. Movimentos como o BLM devem prestar mais atenção ao que acontece no Brasil.
Depois, o novo relatório do IPCC é sinistro, e é preciso lembrar que todos nós bebemos água, todos respiramos o mesmo ar. Então, não interessa se você apoia essas causas ou não porque seus efeitos vão afetá-lo de qualquer maneira.
Além disso, uma das lições que aprendemos com as mobilizações nos EUA é que você precisa ter uma relação com os políticos. Lá, o partido Democrata muitas vezes antagoniza com movimentos sociais ou simplesmente nos ignora. No Brasil, vejo uma maior conexão entre movimentos populares e alguns partidos.
Sei que lideranças indígenas chamaram Lula para uma cerimônia, na qual ele foi consagrado como guardião da floresta. Eu imagino ser essa uma salvaguarda dos povos originários para o caso de ele ser eleito. Neste caso, eles podem procurá-lo para dizer: Ei, lembra quando você se comprometeu com a gente?
Como a Internacional Progressista pretende apoiar esses movimentos do Brasil?
NE – Nosso objetivo é garantir que os processos democráticos ocorram de maneira livre e justa. Depois do golpe na Bolívia, vários governos de outros países passaram a buscar a certificação da lisura de suas eleições, e sabemos das ameaças de Bolsonaro a esse processo no Brasil. Por outro lado, organizações como a Apib precisam colocar suas lutas em plataformas internacionais e se conectar com outros movimentos progressistas.
No mês passado, durante um evento da ultradireita americana em Dakota do Sul [organizado pelo estrategista Steve Bannon e pelo empresário Mike Lindell], o filho do presidente brasileiro, Eduardo Bolsonaro, subiu ao palco para dizer que Lula é a maior ameaça esquerdista do planeta. Sendo que Bolsonaro é a maior ameaça autoritária do mundo hoje.
O presidente brasileiro está articulado com uma rede de ultradireitistas, neonazistas e fascistas organizados globalmente. Então, precisamos também nos organizar, não em um antagonismo cínico, mas para oferecermos propostas e projetos reais para a vida na Terra.
Raio-X
Nick Estes, 35
Nascido na tribo Lower Brule Sioux, em Dakota do Sul, nos EUA, é co-fundador do movimento indígena de resistência The Red Nation e um dos articuladores da ocupação da reserva de Standing Rock, formada em 2016 para se opor à construção do oleoduto Dakota Access, que passa sob o rio Missouri, ameaçando suas águas. Sobre essa mobilização, escreveu o livro “Our History Is the Future” (Verso, 2019). É professor do departamento de Estudos Americanos da Universidade do Novo México.