O advogado criminalista e pesquisador Fernando Fernandes e o historiador Carlos Fico, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), tiveram acesso a 10 mil horas de gravações de sessões do Superior Tribunal Militar (STM) que apontam a prática de tortura durante o período da ditadura militar (1964-1985). Os áudios inéditos divulgados pelo jornal O Globo e confirmados pelo Estadão mostram conversas e relatos dos sete ministros da época sobre os episódios de tortura que chegavam para a análise do tribunal.
Em um dos áudios, o general Rodrigo Octávio relata, em 24 de junho de 1977, o aborto sofrido por Nádia Lúcia do Nascimento aos três meses de gravidez. Na gravação, ele defende a apuração do caso. Ela teria sofrido “castigos físicos” em um dos Doi-Codis, órgãos de repressão política sob comando do Exército que agiam nos estados, no combate à oposição ao regime. O ministro relata ainda que Nadia e o marido sofreram “choques elétricos em seu aparelho genital”.
“Na defesa das salvaguardas dos direitos e garantias individuais, expresso no artigo 153, parágrafo 14 da emenda constitucional 69, como consequência não só de nossa evolução política, lastreada em secular vocação democrática e formação humanística, espírito cristão, com o compromisso assumido na Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovado em resolução da terceira sessão ordinária da Assembleia das Nações Unidas, tais acusações, a meu ver, devem ser devidamente apuradas através de competente inquérito, determinado com base no inciso 21 do artigo 40, da lei judiciária militar, Decreto Lei 1.003 de 69”, afirma o general.
De acordo com Fernandes, os julgamentos obtidos não são apenas políticos e envolvem supostos crimes ocorridos no meio militar. Há relatos de tortura com marteladas e choques elétricos e em órgãos genitais.
“Os julgamentos não são só políticos, mas militares. Esses áudios derrubam afirmações de que não houve tortura, mas também do mito que querem criar de que não havia corrupção no regime. Havia inúmeros crimes militares, deserções, inclusive. Esses áudios se confrontam com o negacionismo. Não só provam torturas, mas também corrupção entre militares”, conta o pesquisador Fernando Fernandes.
As gravações obtidas pelos pesquisadores vão de 1975 a 1985. Em 2006, Fernandes pediu acesso ao material, mas o STM negou. O advogado recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF). Cinco anos depois, a ministra Cármen Lúcia determinou a entrega do material, ordem que foi cumprida apenas após o plenário do Supremo confirmar o voto da ministra, em 2015.
Em breve, todo o conteúdo das 10 mil horas de gravações estará disponível em um site em fase de conclusão. O projeto, uma parceria de Fernandes com os professores Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder, da UFF (Universidade Federal Fluminense), e com a Geração Editorial, será batizado de “Voz humana”. Parte do projeto, como a transcrição dos julgamentos, já pode ser acessado no site “Brasil: nunca mais”.