PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – A Folha de S.Paulo estampava a manchete “Lacerda acusa o ministro da Justiça de tramar o fechamento do Congresso”, sobre a declaração do então governador da Guanabara à cadeia de rádios e televisão, enquanto o presidente Jânio Quadros, eleito com apoio do mesmo Lacerda e da UDN, participava de um evento pelo Dia do Soldado, em Brasília, naquele 25 de agosto de 1961.
Jânio já tinha em mente a decisão tomada naquela madrugada, que deixaria o Brasil à beira de uma guerra civil, como registrado na edição do dia seguinte.
Com menos de sete meses de governo e depois de eleito com 48% dos votos para um mandato de cinco anos, ele renunciou à Presidência naquele dia 25, com um bilhete.
No texto, o homem que prometia varrer a corrupção, que já havia sido deputado, prefeito e governador de São Paulo, mas discursava como “outsider” do sistema, se dizia então “vencido pela reação”, se sentindo “esmagado”, alegando que “forças terríveis” levantaram-se contra ele.
Quais eram essas forças ou os planos exatos de Jânio, ele nunca explicou. Passados 60 anos da renúncia, o consenso é o de que o presidente, lembrado por atos como a proibição de biquínis nos concursos de miss, tentou ali um autogolpe que fracassou.
“Hoje a gente tem isso bastante consolidado, não há nenhuma evidência de que o Jânio tenha sido forçado a tomar essa atitude. Tudo aponta para um espantalho que o próprio Jânio criou para mobilizar forças populares, inclusive forças mais progressistas do espectro político, para viabilizar o retorno dele com poderes ampliados”, explica Felipe Loureiro, coordenador do curso de relações internacionais da USP e autor de “Aliança para o Progresso e o governo João Goulart” (Unesp, 2020).
A decisão pegou todo o país de surpresa, aliados e oposição. Se Jânio calculava que o povo sairia às ruas, ou que o Congresso não aceitaria a renúncia para evitar a posse de seu vice, se frustrou.
Sob a Constituição vigente, datada de 1946, presidente e vice eram eleitos separadamente.
João Goulart, o Jango, era o herdeiro do trabalhismo e de Getúlio Vargas (1882-1954), com posição mais à esquerda, e que naquele momento estava do outro lado do mundo, em uma viagem à China planejada pelo próprio Jânio.
O Congresso aceitou a renúncia em dez minutos, com o deputado Almino Afonso (PTB-AM), líder do partido de Jango, dizendo que o ato era unilateral e irreversível, enquanto alguns governistas tentavam defender a rejeição.
O senador Lino de Mattos, segundo arquivos do Senado, tentou rasgar o bilhete para impedir que a saída fosse consumada.
Às 17h daquele tumultuado dia, o presidente da Câmara, Ranieri Mazzilli (PSD-SP), tomava posse interinamente, tendo sua fala interrompida por aplausos em dois momentos: quando disse que Jânio era um grande brasileiro e quando se referiu aos ministros militares, que o acompanhavam.
A única aposta acertada de Jânio, no que se supõe ter sido seu plano frustrado, foi a de que as Forças Armadas não aceitariam Jango.
Dois dias depois, junto com a UDN, principal partido da oposição a Jango, os ministros do Exército, da Marinha e da Aeronáutica declararam ser contra a posse do vice, como previa a Constituição, por acharem que ele estava “comprometido com o comunismo”, levando o país a duas semanas de tensões e à campanha da legalidade.
Um ano antes de ser eleito, em outubro de 1960, Jânio lançara sua candidatura pelo suprapartidário Movimento Popular Jânio Quadros (MPJQ) e fora escolhido como presidenciável pelo PTN.
“Você tem uma campanha sustentada no moralismo, no combate à corrupção –toda vez que o pensamento reacionário emerge, uma das bandeiras que ele levanta é o combate à corrupção, porque desacredita a política como forma de solução dos problemas nacionais. A vassoura do Jânio é isso”, afirma Heloísa Starling, historiadora, escritora e professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais).
“Ele se pintava com uma estética próxima do povo, botava talco no casaco para parecer caspa, no meio do comício tirava uma banana e comia porque estava com fome. Essa combinação produziu uma onda e ele foi muito votado”, acrescenta.
“O que chega ao poder é completamente frankensteniano, porque toda a carreira do Jânio é antiestablishment, antipolítica, anti-getulista. O Jango é o herdeiro do getulismo. Você leva para o topo do Executivo brasileiro as duas forças antagônicas mais importantes da política brasileira para governarem juntas. Um equívoco da Constituição de 46”, aponta Amir Labaki, autor de “1961- A Crise da Renúncia e A Solução Parlamentarista” (Brasiliense, 1986).
Na Presidência, o curto governo de Jânio é marcado por ações personalistas, embates com o Congresso -além de ordenar investigações que atingem políticos, ele se afasta da UDN, partido que o ajudou a se eleger- por uma política interna de austeridade, respondendo ao FMI (Fundo Monetário Internacional), e externa mais à esquerda, abrindo caminho para a normalização das relações com países comunistas, como a URSS, a fim de ampliar o mercado externo brasileiro, aponta Loureiro.
A posição no cenário internacional, uma quebra importante do papel que o Brasil desempenhava até então, em um cenário de Guerra Fria, desagradou Carlos Lacerda, então governador da Guanabara, um dos líderes do campo conservador e quem tutelou o apoio da UDN a Jânio na campanha.
Nos dias de crise de agosto, um dia depois de discutir com Lacerda sobre um movimento para impor a reforma institucional que daria mais poderes à Presidência, Jânio condecorou com a Ordem do Cruzeiro do Sul o guerrilheiro Ernesto Che Guevara, então ministro da Indústria e Comércio de Fidel Castro em Cuba.
Cerca de uma semana depois, quando denuncia a trama do ministro Pedroso Horta pelo fechamento do Congresso, Lacerda diz que considera a crise com Jânio encerrada, mas critica a “visão defeituosa dele na política mundial”.
“O Carlos Lacerda é o grande catalisador da crise que levou à renúncia, assim como foi o grande catalisador da crise que levou ao suicídio do Vargas. Lacerda é o maior demolidor de presidentes da República de 45”, avalia Labaki.
Depois da renúncia, Jânio parte para o exterior, onde permanece até 1962, quando decide voltar para disputar novamente o Governo de São Paulo -e perde.
“Essa derrota é acachapante, porque acaba com esse mito da invencibilidade que ele tinha e fica muito claro o custo político da atitude irresponsável que ele tomou em agosto de 1961”, afirma Loureiro.
Ao neto, meses antes de morrer, Jânio disse que seu ato fora seu maior erro. “Foi o maior fracasso político da história republicana”, afirmou.
Em outro agosto com ares de crise, os especialistas dizem reconhecer pontos em comum com o governo de Jair Bolsonaro na retórica anti-institucional, no candidato que diz não ter relação com as elites ou establishment político, mas ressaltam diferenças importantes.
“Se na história do Brasil teve algo similar, do ponto de vista de destampar o que eu chamaria de fundo recessivo, fundo reacionário da sociedade brasileira, certamente é Jânio”, diz Starling.
“O que diferencia é que [com Jânio] não há projeto de destruição do que existe no país. Isso é absolutamente inédito. Bolsonaro, depois que toma posse, num jantar diz que o propósito do seu governo é desconstruir. A outra coisa é que há projeto de futuro no governo Jânio Quadros, hoje não tem. Você não tem também na campanha o apelo militarizado à população, essa ideia de armar a população, não existe.”
Para Loureiro, o movimento em torno de Bolsonaro é muito mais organizado e estruturado do que foi o janismo.
“O janismo era um movimento pouco capilar, pouco institucionalizado e organizado, que é uma das razões pelas quais, quando ele renuncia, não tem essa reação popular que ele imaginava. O bolsonarismo tem uma organização, uma capilaridade e inclusive uma organização dentro das Forças Armadas e policiais que o janismo nem sonhou em ter. A ameaça que o Bolsonaro representa para a democracia, para o Estado democrático de Direito, é muito mais séria”, avalia.
“A crise de 1961 foi o último teste de resistência vencido pela Constituição de 1946, ainda que às custas de um remendo de emergência, que foi a emenda parlamentarista. As eleições de 2022 apontam, talvez, o maior teste de resistência da Constituição de 1988”, arrisca Labaki.