Abrir um exame diagnóstico na tela do computador e ler “SARS-CoV-2 (Coronavírus) detectado” não foi uma experiência nem um pouco agradável. Era um segundo teste, somente para confirmar um exame anterior que havia dado negativo, e que também havia sido feito em todos de casa, depois de sabermos que minha filha mais nova estava infectada. Eu não tinha tido nenhum sintoma significativo até aquele momento e, após saber do resultado, me isolei em meu quarto para não contaminar ninguém, avisei quem eu tive contato e comecei uma jornada que incluiu buscar recursos para lidar com a doença e encarar o confinamento.
A primeira providência foi consultar um infectologista que fez um belo exame clínico pelo WhatsApp. Ele me perguntou uma série de coisas, fez contas para investigar quando teria sido meu contágio e me orientou em relação aos cuidados e às precauções necessárias. Foi quando eu percebi que algumas coisas que havia sentido, vários dias antes, possivelmente, já eram sinal da presença do vírus. Mas como são sintomas que eu costumo ter, por outros motivos (tosse seca que faz parte de minha alergia crônica; cansaço depois de uma corrida, num dia de muito calor; dores musculares após retomada dos treinos de musculação), eles foram negligenciados por mim. Que medo de ter transmitido a doença antes de saber que estava com ela! Ao que tudo indica, não passei para ninguém. Nem para o meu marido, nem para minha filha mais velha que está prestando vestibular, nem para minha funcionária doméstica. Ufa!
Provavelmente, o Coronavírus entrou em minha casa pela porta da frente, passagem que eu mesma abri ao permitir que minha filha adolescente viajasse no réveillon. Praticamente assintomática, testou positivo, depois de dois companheiros de viagem relatarem ter febre. Imediatamente, antes mesmo de saber o resultado do seu teste, foi isolada, mas não a tempo de evitar a transmissão. Embora essa seja a hipótese mais provável, há também uma possibilidade remota de eu ter pego o bicho na farmácia, na padaria, na loja de conveniência do posto de gasolina, no supermercado, no velório de uma amiga, no consultório ou numa sessão de shiatsu no shopping. Vai saber?
Ciente do meu diagnóstico, contei minha situação para algumas pessoas. Quem já teve a doença me deu dicas preciosas para driblar os sintomas. Alguns conhecidos (médicos ou não) me indicaram uma ou outra medicação preventiva, que preferi não tomar, já que o meu infectologista não julgou necessário. Amigos próximos e familiares acompanharam minha evolução, mantiveram um contato mais frequente e me mandaram carinho virtual em forma de mensagens e ligações de áudio e vídeo. Há também os que, mesmo tentando ajudar, acabaram me assustando, demonstrando preocupação excessiva e fazendo questão de contar mil histórias sobre os casos malsucedidos, aumento da mortalidade, essas coisas.
Não posso reclamar do meu confinamento, pois meu marido e minhas filhas cuidaram de tudo, me alimentaram e me substituíram nas responsabilidades da casa. Tive acesso a muitas formas de distração, como livros, TV, internet, e tudo o que é possível fazer hoje em dia pelo celular. E ainda consegui manter alguns atendimentos no modo on-line.
Estou quase completamente recuperada, mas tive alguns sintomas bem intensos, como dor no globo ocular, calafrios, fadiga, falta de apetite, insônia, um mal-estar terrível, prostração, perda de olfato e paladar. Senti dores fortíssimas nas costas e no quadril como nunca havia sentido. Vinham em ondas e, geralmente, de madrugada. Nestes momentos, o choro desesperado e solitário foi inevitável e eu tive muito medo – sentimento difícil de enfrentar sozinha.
Tive medo de piorar de repente, medo da minha oxigenação cair, de ter febre, de ter uma inflamação generalizada, de ter trombose, de ser internada, entubada e entrar para a estatística daquelas pessoas saudáveis, que praticam atividade física, que não têm comorbidades e não são do grupo de risco, mas, ainda assim, morrem de Covid. Mesmo sendo uma pessoa com um bom grau de autoconhecimento, tive dificuldade em saber se aqueles momentos de coração acelerado e respiração curta seriam sinal de um possível problema pulmonar ou de ansiedade. Ao longo dos meus 48 anos, não me lembro de ter sentido um medo tão real de morrer.
Percebi um certo ar de reprovação na conversa com algumas pessoas: “Por que você deixou sua filha viajar no réveillon? Se ela estava contaminada, como vocês saíram de casa e não se isolaram também? Não vai fazer nenhum exame para comprovar que já sarou? Não vai tomar cloroquina, ivermectina, azitromicina, Anita, Beyoncé, Tina Turner, tubaína e o “diabo a quatro”? Já vai sair do isolamento, não é melhor ficar em casa mais uns dias, só para garantir?” E tem também a sensação esquisita quando alguém que te encontra dá um passo para trás, mesmo que você não seja mais um meio de contaminação.
Verdade, porém, a principal fonte de julgamento e condenação sou eu mesma. Ainda não me conformo de ter sido contaminada, visto que sempre fui muito cuidadosa. Esterilizo tudo o que entra em casa, não participo de aglomerações, quase não frequento lugares públicos e, quando o faço, não tiro a máscara por nada. Mantenho distância das pessoas e abuso do álcool gel, não beijo, não abraço. Mas deixei o vírus chegar quando cedi ao apelo insistente de minha filha. Entendo que fiz isso por excesso de confiança, por subestimar o perigo, por pena dela e por estar de saco cheio dessa maldita pandemia interminável. Portanto, além de enfrentar o medo, tive de conviver com a culpa. Fui vítima, sim, mas não posso me eximir da responsabilidade por tudo o que me aconteceu. “Menos mal” não ter contaminado ninguém. E sou muito grata por não ter ficado gravemente doente.
Além de medo e culpa, senti raiva. Como alguém pode negar a existência da pandemia? Há aproveitamento político? Claro! Há manipulações espúrias? Óbvio. Corrupção? Infelizmente, essa nunca vai acabar. Mas negacionismo e boicote à Ciência e à vacina são coisas que eu tenho muita dificuldade em entender e aceitar. O que, então, explicaria os sintomas inéditos que eu tive? Alguém já perdeu olfato e paladar sem estar congestionado ou sem ter tido nenhum sinal de gripe ou resfriado? Qual doença faz com que um estrogonofe, comida bem condimentada, tenha o mesmo gosto de um pão com manteiga, purê de batatas, sopa de legumes, um vaso de terra ou a sola de um sapato? Eu tenho um olfato ruim em razão de minha rinite e desvio de septo, mas não sentir o cheiro de absolutamente nada é inédito e muito estranho. Posso enfiar o nariz no vidrinho de própolis, na garrafa de água sanitária, passar meu perfume mais adocicado, coar café ou fritar camarão que eu não sinto nada. Nada! Até quando? Não se sabe. Quais os efeitos a longo prazo? Impossível prever.
O ano que passou foi absurdamente triste e este começou do mesmo jeito. Mesmo retomando minhas atividades, permanecem os momentos de coração palpitando e de choro solto e sentido. Há exatamente um ano, publiquei, nesta mesma coluna, um artigo sobre minhas férias na Bahia e sobre saúde mental. Contei, entre outras coisas, que a viagem tão esperada tinha sido prejudicada por uma virose que atacou o aparelho digestivo da família inteira. Nada extraordinário em se tratando de verão na, nada urbanizada, Caraíva. Nunca poderia imaginar que um ano depois o tal do coronavírus contaminaria quase cem milhões de pessoas no mundo todo (minha filha e eu, inclusive).
Uma frase do padre Fábio de Melo, no Instagram, representa um sentimento geral: “O mundo está pesado. Uma espessa camada de tristeza está sobre nós”. A situação está muito crítica e aparentemente fora de controle, a doença não é brincadeira e os números só aumentam. O mundo todo está de “pernas pro ar”. Dependemos de um esquema de vacinação que vem sendo tratado com absoluto descaso. Uma vergonha! Mas não podemos esquecer que temos uma arma poderosa ao nosso alcance: nosso comportamento. A mudança desse cenário caótico é possível a partir de nossas ações de prevenção (uso de máscara, distanciamento social, evitar aglomerações, higienizar as mãos, blá, blá, blá). Sou um exemplo vivo (ainda bem) de que o relaxamento é perigoso e pode ser catastrófico, já que um contamina dez, que contaminam mais dez, e por aí vai.