Mário, meu querido Andrade, então você saiu do armário, hein? Quer dizer, te arrancaram de lá, isso sim, já que sem sua autorização! É que agora tem uma lei sobre acesso a informações. E, por isso, veio a lume a carta que você escreveu ao Manu, como você carinhosamente chamava Manuel Bandeira, seu amigo e confidente. Não está lembrado, Mário? Avivemos, então, sua memória epistolar.
No dia 7 de abril de 1928, você escreveu a ele, de forma muito discreta – hoje diríamos até ingênua – sobre sua orientação sexual. Lembrou-se? Pois, então, Mário! Essa carta – e isso foi há 94 anos – nunca foi transcrita por completo. Pudicícia de quem? Da família, que era muito carola e pudibunda? Dos amigos, que queriam preservar sua imagem, também uns pudicos? Ou da hipocrisia social, a repressora de sempre?
Mas, Mário, até onde sei, você sempre foi “fora da caixinha”, não? Para a família, você era um “perdido”, no sentido de fora das regras. Vamos lembrar do ginásio? Você se desentendeu com os professores e com o sistema escolar e chutou o balde.
Depois – e olha que você era congregado mariano! -, deu na sapituca de ler livros que a Igreja proibia, os que constavam do Index Prohibitorum, e foi preciso ter a autorização do Vigário Geral do Arcebispado, ou eu tô equivocado?
Talvez por isso, por você ser em casa um “perdido”, é que fez coisas de sarapantar, como diria Macunaíma. Lembra da “Cabeça de Cristo”, aquela estátua de bronze do Brecheret, que você levou pra casa? O que a Tia Nhãnhã falou para sua mãe?
“Maria Luiza, vosso filho é um perdido mesmo! Onde se viu Cristo de trancinha? Isso é até pecado mortal!” E você, que estava “sensualissamente feliz”, de repente se indignou, subiu pro quarto e, num jorro de vômito intelectual, rascunhou “Pauliceia Desvairada”. Lembra disso?
Mário, voltando à sua carta-confissão ao Manu, que bobagem ficarem com pruridos sobre publicar ou não! E o mistério de há 87 anos só aumentou a fofocaiada.
Agora, Mário, sem papas na língua, todo mundo sabia que você era viado, vamos falar claro? E grafo viado, que hoje é politicamente incorreto, para pararem com essa frescura de pruridos e pudicícias. Você mesmo assumiu o fato na carta, não? “Está claro que eu nunca falei a você sobre o que se fala de mim e não desminto!”
Repito: se todos sabiam, porque este nhenhenhém todo? E você não era nada discreto, vamos combinar? Não, não é fofoca não, Mário! Longe de mim falar mal de você, por favor! E não me trate como tratou a Oswald de Andrade. Lembra que ele disse que você era um “mulato sestroso” e isso foi motivo prum desentendimento eterno? Quando quiseram reconciliá-los, você foi incisivo: “Ele que vá à reputa e à triputa que o pariu!”
Não tô desmerecendo você não, criatura! Mas era o seu jeitão, oras! Por exemplo, estou lembrando que, no Carnaval de 1917, você ia sair de pierrô com losangos verdes e brancos – aliás, fantasia pensada e desenhada por você -, mas seu pai faleceu. Tá lembrado? Em vez de desfilar de pierrô, você vestiu luto fechado. E luto fechado era sagrado, os homens e as mulheres usando só roupas pretas por um ano todo.
E foi assim que, no final do ano, você foi à exposição da jovem Anita Malfatti, cujos quadros Monteiro Lobato já havia chamado de gatafunhos, de arte teratológica, na santa ignorância dele, que não entendia patavina do que era a arte moderna.