SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Imagine prever com exatidão como e quando uma pessoa irá morrer. Uma realidade tão determinista parece um tanto distante – se é que é possível -, mas pesquisadores da USP conseguiram, com uso de machine learning (aprendizado de máquina), um elevado nível de predição de mortes por doenças respiratórias.
A partir de inteligência artificial, os cientistas conseguiram identificar até 88% de mortes por problemas respiratórias. Dentro do grupo de pessoas estudadas, os pesquisadores também fizeram uma classificação do menor ao maior risco para mortes por essas doenças. No conjunto com maior risco (25% da amostra), estavam 100% das mortes respiratórias.
A Covid-19 não fez parte das análises dos pesquisadores.
Também foram avaliadas mortes causadas por problemas cardiovasculares, por neoplasias –que, junto com problemas respiratórios, compõem as principais causas de óbitos no Brasil–, mas, nesses casos, a predição não teve bons resultados.
A essa altura, você já deve, em algum momento dos últimos anos, ter ouvido falar em machine learning. A ideia é, de modo bem resumido e geral, alimentar um programa com um determinado volume de informações como forma de treinamento. O objetivo, nessa fase, é que a aplicação consiga perceber padrões nesses dados –que talvez escapem aos olhos humanos.
Em seguida, outro conjunto de dados é apresentado ao programa para que ele tente identificar padrões –e apresente respostas que nós, humanos, não conseguimos dar.
Pesquisadores da USP fizeram exatamente isso com dados de paulistanos com 60 anos ou mais coletados nas últimas duas décadas.
Os cientistas do Labdaps (Laboratório de Big Data e Análise Preditiva em Saúde) da faculdade de saúde pública da USP usaram a base de dados da pesquisa Sabe (Saúde, Bem-Estar e Envelhecimento), da mesma faculdade, focada em pessoas da cidade de São Paulo com 60 anos ou mais.
Na pesquisa do Labdaps publicada esta semana na revista Age and Ageing, foram observadas as causas de mortes das pessoas nos cinco anos posteriores às entrevistas feitas pela Sabe, que teve início em 2000, com coletas de dados em anos posteriores. Para o estudo com algorítimos de machine learning, os cientistas usaram os dados coletados em 2006 e 2010 pela Sabe, o que totalizou 1.767 pessoas.
A Sabe, porém, não foi feita para apontar mortalidade. Por isso, os pesquisadores tiveram que cruzar essas informações com os dados de mortes do município de São Paulo.
Com o cruzamento feito, o algoritmo de machine learning foi alimentado, para treinamento, com 70% do banco de dados. Os outros 30% foram usados para o teste de predição.
Segundo os autores, trata-se de um dos estudos mais amplos já feitos com predição de morte em populações grandes. “O que existe na literatura é aplicação de machine learning para identificação de risco em populalções específicas. Por exemplo, em pessoas que já apresentam problemas cardíacos, em pessoas que já têm diagnóstico de câncer”, afirma Carla Nascimento, doutoranda em saúde pública pela USP, pesquisadora do Labdaps e uma das autores do estudo.
O objetivo desse tipo de tecnologia é impactar a conduta clínica dos profissionais de saúde.
“Abre um leque de possibilidades de iniciar medidas preventivas ao ponto de conseguir evitar que a morte ocorra”, diz Alexandre Chiavegatto Filho, diretor do Labdaps. “Não é algo ‘você vai morrer e não tem o que fazer em relação a isso’. O grande interesse de saber é evitar que isso aconteça.”
Mesmo sendo uma informação que, em teoria, é destinada só à equipe de saúde, os pacientes também poderiam ter acesso ao dado. E aí entra a questão: “Será que as pessoas vão querer saber disso?”, questiona Chiavegatto Filho.
“Algumas pessoas se assustam quando elas identificam um risco de ter algum desfecho. Mas eu também não acho que seja um medo que perdure muito tempo”, diz Nascimento. “Mas eu não penso na aplicação disso para a poupulação, mas, sim, para profissionais.”
A equipe de pesquisadores pretende avançar dentro desse universo e busca entender o quanto esse tipo de tecnologia pode, de fato, mudar a conduta clínica. Para isso, a ideia é fazer um estudo randomizado disponibilizando o programa para um grupo de médicos, ao mesmo tempo em que outro conjunto não receberá acesso à tecnologia. A partir disso, os pacientes desses profissionais serão acompanhados.
A aplicação será disponibilizada a um rede de 30 hospitais espalhados pelo Brasil a partir de uma plataforma chamada RandomIA, que teve financiamento da Microsoft e da Fapesq (Fundação de Apoio à Pesquisa do Estado da Paraíba).
Antes da disponibilização do algoritmo de inteligência artificial, porém, a equipe do Labdaps busca entender que tipo de informações os médicos querem ver na aplicação.
“Será que ele quer algo bem simples. ‘Esse paciente vai a óbito em 5 anos por doença cardiovascular’. Será que ele quer uma probabilidade? Ou fornecer probabilidades e graus de incertezas”, afirma Chiavegatto Filho. “Às vezes muito detalhe pode ser muito complexo e o médico pode acabar ignorando a informação. E com poucos detalhes o médico pode acabar não confiando nesse resultado.”
Vale ressaltar, porém, que esse tipo de aplicação tecnológica na área de saúde ainda se encontra na fase de estudos, não tão próxima da aplicação no cotidiano médico.
O diretor do Labdaps imagina que, quando estiverem amplamente disponíveis, mecanismos do tipo serão bem recebidos pela comunidade médica. Ele compara a situação com o aplicativo Waze, que apresenta opções de rota de acordo com inúmeros dados coletados aos quais o condutor não necessariamente teria acesso fácil.
“É impressionante a quantidade de decisões difíceis e complexas que os médicos tomam ao longo do seu dia”, diz Chiavegatto Filho. “O médico passa muito tempo coletando informações de pacientes e recebe de volta informações dispersas. Nada que unifique essa informação toda e ajude a tomar uma decisão. É isso que a inteligência artificial está trazendo.”