Quando assisto aos depoimentos na CPI da Covid-19, sinto um bolo no estômago,
provocado pela mistura de vergonha alheia, nojo e revolta. É muita mentira deslavada!
Como alguém pode ter tanta cara de pau para fazer afirmações que são tão facilmente
contestadas por discursos da própria pessoa, alguns meses atrás? Infelizmente, o jogo
político funciona assim, como um grande tabuleiro em que, nós peões, transitamos entre
falcatruas, Fake News, roubalheira, segredos e mentiras.
Porém, vamos deixar a política de lado e pensar na mentira num âmbito maior.
Vejam o seguinte diálogo:
– Zezinho, qual foi a última vez que você mentiu?
– Imagina, Fabi, eu não minto.
– Mente sim, Zezinho!
– Você está me chamando de mentiroso, Fabi?
– Não, Zezinho, estou te chamando de ser humano.
Sem entrarmos no campo da ética, podemos considerar que mentir é um ato
intrínseco à condição humana e, evolutivamente, é um comportamento importante para a
sobrevivência de todas as espécies, pois, assim como os humanos, outros seres vivos têm
subterfúgios para enganar seus predadores. O filme “O professor polvo” (2020) ilustra,
maravilhosamente, este truque. Depois de assisti-lo, o molusco ganhou meu coração! O
polvo tem uma inteligência impressionante: só conseguiu sobreviver, até hoje, aos
ataques dos ferozes tubarões, por saber se fingir de um outro ser, composto por um monte
de pedras, algas e conchas. Os vírus também são hábeis em trapacear o sistema
imunológico dos animais que os hospedam e, por isso, são tão difíceis de serem
combatidos.
Pois bem, trapaça, mentira, engano e falsidade estão presentes na vida de qualquer
ser da natureza. Sendo assim, como criaturas orgânicas, não poderíamos ser diferentes.
Contudo, nós humanos, nos especializamos tanto na arte de mentir, que extraímos dela
outros benefícios, não muito nobres, além da garantia de sobrevivência.
A mentira está contida em nossa vida social e pode ser usada para o bem ou para
o mal. Grosso modo, o ato mentiroso costuma ser condenável se tem o objetivo de
prejudicar alguém ou se produz algum dano importante, concordam? E o que dizer
daqueles atos, pouco verdadeiros ou distantes da verdade, mas que acabam por beneficiar
a vítima do engano ou poupá-la de um mal maior? Qualquer pai ou mãe costuma mentir
bastante para seus filhos. Quem nunca disse para uma criança machucada: “deixa eu dar
um beijinho pra sarar”? Mentira, beijo não cura feridas. E quantas vezes já dissemos a
alguém doente: “você vai sair dessa, logo estará curado”, sabendo que a verdade era
realmente oposta? E o que falar sobre o autoengano, tão presente em situações difíceis de
encarar?
O filme, “O Primeiro Mentiroso”, de 2009, é uma comédia romântica que discute
essa questão. Apesar dos atores não serem lá essas coisas e da história ser meio bobinha
e previsível, podemos extrair da produção alguns questionamentos interessantes. Ele
conta a história de uma sociedade na qual a mentira simplesmente não existe. Sendo
assim, as pessoas confiam plenamente nas palavras umas das outras, interpretam
literalmente tudo o que é dito e não poupam ninguém de suas verdadeiras opiniões.
Imagina dizer ao “crush”, no primeiro encontro, que está procurando alguém para
procriar (coisa que intimamente muitas mulheres pensam) e que, portanto, ele não parece
um bom partido por ser feio, gordinho, pobre e ter cara de perdedor? Ou falar para o
guarda que você está dirigindo alcoolizado e ele confessar que aceita suborno, pois o
dinheiro é importante na manutenção do seu vício em cocaína? E você, se fosse médico,
teria coragem de revelar a uma paciente idosa, lúcida e fofa, que ela provavelmente tem
poucas horas de vida? Os personagens vão vivendo na maior honestidade até que, Mark
Bellison, um homem fracassado em todas as áreas da vida (o “crush”, que citei acima),
passa a falar inverdades que o beneficiam e mudam completamente o modo de vida de
todos. Começa a se dar bem no trabalho, fica rico e famoso e, por inventar uma suposta
vida paradisíaca após a morte, torna-se uma espécie de messias. Moral da história: um
mundo sem mentiras é inconcebível, estranho e desagradável. Nele não há ilusões, nem
fantasia, privacidade ou ficção, e muitas de nossas crenças podem ser simplesmente
baseadas em invenções.
Na Justiça, buscar a realidade dos fatos é bastante importante. O polígrafo, ou
detector de mentiras, já foi usado em situações deste tipo. É um aparelho que,
supostamente, capta reações fisiológicas típicas que acontecem quando alguém está
mentindo. E, vejam que interessante! O mesmo homem que inventou esse aparelho, lá
pela década de 1930, o psicólogo americano Willian Moulton Marston, é o criador da
personagem Mulher Maravilha e viveu uma relação poligâmica. No filme que conta sua
história Professor Marston e as Mulheres Maravilhas, de 2017 – também há reflexões
sobre o que nos move a revelar a verdade ou nos manter cultivando segredos.
O terreno amoroso é campo fértil para o desenrolar de mentirinhas e mentironas.
A arte da sedução, geralmente, compreende uma certa ocultação da realidade, como forma
de autopropaganda. E, obviamente, a revelação da verdade, muitas vezes, inviabiliza os
relacionamentos proibidos ou os não aceitos.
Moralismos à parte, podemos encaixar nossos atos mentirosos em duas grandes
categorias: falta de caráter e resolução de problemas. Mentir pode ser um ato criminoso,
uma baita sacanagem ou um jeito de resolver alguma questão insolúvel, uma alternativa
“menos pior”.
Desse modo, devemos questionar a tal da verdade absoluta. Mesmo a ciência, que
entende os fenômenos a partir da comprovação de fatos e da verdade por consenso, é
constantemente questionada por ela mesma.
Do ponto de vista filosófico, a vida é tão dialética e os acontecimentos são tão
relativos, que podemos considerar que verdades opostas, às vezes, coexistem. Dito de
outra maneira, ao falarmos de assuntos relacionados às nossas crenças e convicções,
devemos sempre conceber a possibilidade de que o outro, por estar em um ponto de vista
diferente, possui verdades distintas das nossas.
Fato é que criamos uma sociedade onde mentir pode ser um meio de vida e embora
haja sinceridades impraticáveis e segredos inconfessáveis, crimes contra o povo deveriam
ser inafiançáveis.