Depois de assistir “Maid”, na Netflix, fiquei dias com “Shoop” na cabeça, um hiphop
americano de uma banda formada só por mulheres, dessas músicas chiclete, cuja
letra, cheia de gírias, é muito difícil de traduzir. Me esforcei e entendi que, não à toa, a
canção tem como conteúdo o protesto de uma mulher, aparentemente empoderada, que
faz de seu amante gato e sapato. Acredito também que não tenha sido por acaso, que a
música fora escolhida para selar momentos importantes do relacionamento de Alex, a
protagonista, com sua filha Maddy, de apenas três anos de idade. Imagino que essa mãe,
estaria querendo passar, logo cedo, para a menina, a mensagem de que ela deve ser forte,
assim como ela mesma foi, ao longo dos dez episódios da série.
“Maid” estreou este mês, já é umas das séries mais vistas de todos os tempos e
está na boca do povo. Não considero, então, que esteja dando aqui muitos spoilers ao falar
que ela aborda a violência doméstica e os relacionamentos abusivos. Se você é
consumidor de plataformas de streaming, já deve estar ciente desta informação. E ela
deveria mesmo ser vista por todos, pois deflagra a situação de muita gente, homens e
mulheres, que vêm sofrendo calados ou que nem sabem que estão em relações tóxicas.
Alex é uma moça de 25 anos que foge de casa, no meio da noite, com sua filhinha
no colo, após uma briga com o marido agressivo e embriagado. Depois de dormir no
carro, começa uma saga em busca de abrigo e de algum tipo de assistência governamental.
Encontra muitas dificuldades, já que não tem como comprovar ser vítima de violência,
por não ter sofrido nenhuma agressão física. Não há hematomas nem feridas, não há
humilhação pública. Porém, violência psicológica há de sobra. Sean, o marido, a
desqualifica, intimida e a ameaça de diversas maneiras: grita, xinga e quebra objetos em
momentos de fúria. A gota dágua para sua fuga ocorre quando ele esburaca a parede com
um soco. Depois de fugir, Alex se vê sem apoio, sem teto, sem nenhum tostão furado e
com uma filha para criar. Encontra trabalho como faxineira, o que lhes permite um nível
mínimo de sobrevivência.
Como a temática central da história gira em torno do relacionamento entre o casal,
questiona-se o tempo todo se Alex, de fato, deveria ter cometido atitude tão radical.
Muitos a incentivam a voltar com o marido que, afinal, era amoroso com a filha, as
sustentava e sequer cometia agressão física. É aí que está o cerne da questão. Alex resolve
romper um ciclo de relações tóxicas e dependência psicológica que atravessa gerações.
Uma história periférica, mas não menos importante, que faz parte do enredo, é a vida da
sua mãe, que também foi e é submetida constantemente a situações de abuso.
A produção é muito bem-sucedida em apresentar uma grande variedade de
violência psicológica que ultrapassa todos os limites do respeito. A coitada da moça é
assediada moralmente pela dona da empresa de faxinas, é abandonada pelo Estado,
humilhada pelas patroas, invalidada emocionalmente pela mãe e desacreditada pelos
amigos. Sorte, que cruza com boas almas pelo caminho e encontra um excelente serviço
social de apoio. Lá, ela acha forças para lutar por defesa e autonomia ao ouvir falas do
tipo: “Antes de morder, ele late, antes de bater, o soco é na parede, na próxima ia ser na
sua cara”; “devia se orgulhar de você mesma, você começou a revidar, você começou a
se defender”; “ninguém pode dizer que não temos valor, ou que nossas palavras não têm
valor, porque elas têm, nós temos valor e nossas palavras têm valor, porque são nossas”.
O governo brasileiro também oferece assistência às vítimas de violência. Caso seja o seu
caso ou o de alguém que você conheça, ligue no 180, que um profissional irá fazer as
devidas orientações.
Todas as resenhas que li sobre a série (a da Martha Medeiros, que está em sua
página no Facebook, é ótima) enfatizam o uso excessivo de poder (abuso) na relação
conjugal, dando voz às mulheres violentadas, o que é uma causa necessária e muito nobre.
Porém, se quisermos analisar a problemática de maneira ampla e amoral, devemos ir
além. Embora a violência contra a mulher seja infinitamente maior, homens também são
submetidos a situações de abuso. Há relacionamentos tão tóxicos, que fica difícil discernir
quem é o abusador e quem é o abusado. É importante compreender o ponto de vista dos
abusadores que, provavelmente, sofreram abuso e não tiveram força para interromper o
percurso. A repetição da violência é um padrão muito comum e o clichê “violência gera
violência”, muito real. Pessoas agressivas, geralmente, tiveram pais violentos, quem
desrespeita pode ser fruto de relações parentais insuficientes na formação do bom caráter
e quem abandona, possivelmente, sofreu negligência afetiva na infância. É obvio que isso
não autoriza o uso da violência, mas pode ampliar os recursos de manejo da situação.
Uma vez atendi um senhor idoso, com uma depressão muito grave, que me contou
que batia na mulher, no intuito de corrigi-la. Ele entendia de anatomia e escolhia partes
no corpo que não iam gerar hematomas, para que ela não sofresse vergonha pública.
Imediatamente, deixei clara minha indignação e o informei que ele estava cometendo um
crime. Ao mesmo tempo, entendi que por trás da revelação havia um pedido de ajuda para
aprender novas formas de se relacionar com a esposa. Este senhor havia sofrido violência
quando adolescente, ao ser forçado a assistir as relações sexuais dos seus pais. Pensar no
problema somente em termos de vítima/culpado não teria sido suficiente para abordar a
questão. O buraco é bem mais em baixo.
Alex perdoou sua mãe, a amparou e compreendeu, mas não tolerou a violência
vinda de seu pai e de seu marido. Teve coragem para se afastar, respeitar seus limites,
priorizar suas necessidades e construir para a filha uma vida diferente, baseada em afeto,
proteção e validação emocional. Embora a história reflita uma realidade muito triste, a
ternura da relação entre as duas, que pode ser vista nas demonstrações de atenção, nas
brincadeiras, nas manifestações de carinho, ou no simples ato de cantarolarem juntas um
hip-hop qualquer, nos dá um alento.