SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – De cada 4 pessoas presas em São Paulo que poderiam ter deixado a prisão devido a resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) para conter a pandemia da Covid-19 em presídios superlotados e insalubres, 3 foram mantidas atrás das grades por juízes paulistas.
O dado é do relatório “Justiça e Negacionismo: Como os Magistrados Fecharam os Olhos para a Pandemia nas Prisões”, do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD). A entidade atuou em parceria com a Defensoria Pública de São Paulo para garantir o relaxamento de prisão de centenas de pessoas de abril de 2020 a janeiro de 2021.
Baseado nos pedidos feitos por 448 pessoas que poderiam ter recebido liberdade provisória ou medidas alternativas à prisão, o relatório esquadrinha as decisões que permitiram a 118 pessoas (26%) sair de penitenciárias devido à pandemia e os argumentos para manter 330 delas presas (74%), apesar de, segundo o IDDD, cumprirem os requisitos descritos na medida de desencarceramento do CNJ.
A recomendação 62, editada em março de 2020, convocou magistrados a revisarem penas e progressão de regimes nos casos de pessoas idosas, gestantes e com comorbidades, ou seja, aquelas especialmente vulneráveis à Covid-19.
Além disso, o CNJ estendia essa recomendação aos casos de acusados por crimes sem violência ou grave ameaça, num movimento para reduzir a superlotação carcerária típica dos presídios brasileiros.
De acordo com dados do Departamento Penitenciário Nacional, o sistema prisional brasileiro tinha quase 760 mil pessoas em diferentes regimes de restrição de liberdade em junho de 2020. Eram 231 mil presos a mais do que aqueles que cabiam na soma das vagas nas penitenciárias brasileiras.
A concentração de pessoas, a falta de circulação de ar e as condições precárias de higiene, inclusive a restrição no acesso à água, impedem o cumprimento dos protocolos sanitários básicos de prevenção da transmissão do Sars-CoV-2.
Dentre as pessoas brancas atendidas pelo mutirão, 30% foram beneficiadas com decisões favoráveis, contra 24% das pessoas negras. Entre as pessoas com mais de 60 anos, 24% foram atendidas.
“Os resultados desse mutirão carcerário são preocupantes. O Judiciário, que buscou proteger seus membros deixando de realizar uma série de procedimentos e atos processuais presenciais, se desvencilhou da responsabilidade com a preservação das vidas de pessoas sob custódia do Estado. E isso está documentado não só nos números mas também no conteúdo de suas determinações”, afirma Hugo Leonardo, criminalista e presidente do IDDD.
Ele afirma que todas as pessoas atendidas pelos advogados associados ao IDDD se enquadravam nos critérios objetivos para libertação. “Isso mostra a doença crônica que o país vive: um Estado que pune essas pessoas por descumprirem leis, mas que passa o tempo todo descumprindo a lei dos direitos assegurados para elas.”
Isso fica evidente quando se observa que 100% dos pedidos dos advogados tinham como base a recomendação do CNJ e a emergência sanitária em que ela se baseia, mas pouco menos da metade (47,5%) das concessões de liberdade teve a pandemia mencionada pelos magistrados.
Ou seja, os juízes constataram que não havia necessidade de manter a restrição de liberdade por motivos que não tinham nada a ver com a pandemia, evidenciando a potencial ilegalidade da manutenção dessas pessoas atrás das grades mesmo sem o documento do CNJ.
“É mais um capítulo de horror e desrespeito aos direitos humanos”, avalia, no prefácio do relatório, a escritora Juliana Borges, autora de “Prisões: Espelhos de Nós” (Todavia), ensaio sobre o sistema penitenciário brasileiro no contexto da pandemia da Covid-19.
A assessora de projetos do IDDD, Vivian Peres, chama a atenção para o fato de ser papel do Judiciário zelar pela situação processual das pessoas presas e cita o artigo 316 do Código de Processo Penal, que determina a necessidade de revisões periódicas dessas prisões.
“Nesses casos, ao deferir a liberdade provisória ou relaxamento da prisão dessas pessoas, o Judiciário assentiu com a ilegalidade da privação da liberdade desses indivíduos”, afirma Leonardo.
O IDDD é amicus curiae na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 347 (ADPF 347), que pede o reconhecimento das violações de direitos fundamentais das populações carcerárias no Brasil e a adoção de medidas para reversão desse quadro. Em 2015, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a gravidade dessas violações ao declarar o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional no julgamento de medida cautelar na ADPF 347.
“O Estado mantém em confinamento indivíduos entregues à própria sorte. Há tortura desmedida. E o fato é que o Estado brasileiro sabe que pratica tortura em massa contra essa população vulnerável que se encontra privada de liberdade”, afirma o presidente do IDDD.
Apenas 28% das decisões favoráveis aos réus citavam a Resolução 62. Já entre as decisões pela manutenção do cárcere, 39% dos juízes mencionaram a medida, o que evidencia que a iniciativa do CNJ foi mais citada para ser deslegitimada.
Segundo o relatório, optar por manter pessoas presas durante a pandemia é o mesmo que ser conivente com a elevada possibilidade de adoecimento e até mesmo de mortes em grande quantidade.
Dados do monitoramento realizado pelo CNJ apontam que, até o final de julho, o sistema prisional brasileiro registrava 561 óbitos por Covid-19, com mais mortes entre servidores do que entre presos. Em São Paulo, a Secretaria de Administração Penitenciária registra 119 mortes de servidores e 79 de presos.
“O diagnóstico do IDDD permite suscitar questões a respeito da responsabilidade do Judiciário em mortes evitáveis durante essa calamidade”, afirma Leonardo.
Segundo estudo do Instituto de Pesquisa em Políticas para Crime e Justiça, da Universidade de Londres, que monitorou os sistemas prisionais de dez países, entre eles o Brasil, a medida mais eficiente para conter os riscos de saúde apresentados pela Covid-19 e por outras doenças infecciosas é a redução da população prisional.