SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O simbolismo do Dia dos Pais e o impulso de externar emoções às figuras paternas nesta data pode representar um desafio instigante para pessoas que possuem dificuldades para organizar a própria comunicação.
Querer expressar um “eu te amo” ou “você é importante para mim” pode demandar de filhos com afasia–condição que afeta pessoas cada vez mais jovens e que surge em decorrência de um AVC ou lesão cerebral, por exemplo– calma, concentração, dedicação e mais, colaboração ativa e empática de seus interlocutores.
Os afásicos podem ter afetadas suas capacidades de falar, de escrever e também, em muitos casos, o poder de leitura. Para manifestações emocionais, o desafio de expressão pode ser ainda maior.
Após três anos de reabilitação de um AVC e a retomada gradual da fala –agora vagarosa, com pausas e com alguns episódios de perda do raciocínio–, a jornalista Francine Kath, 42, ainda tem enfrentamentos para estabelecer uma conversa com fluência com o pai, o empresário aposentado Ivo Alfredo Kath, 72.
“É difícil para ele me entender e fazer associações de palavras que possam me ajudar em uma conversa. Além disso, ele usa aparelho auditivo, o que torna tudo mais complexo. Por outro lado, meu pai esteve a meu lado o tempo todo da minha internação, que durou seis meses. Ele é durão, mas choramos juntos e encontramos nossa forma de externar os sentimentos”, diz Francine.
Ela conta que sua relação com o pai se transformou totalmente após as mudanças impostas pelo AVC, incluindo ter tido a afasia.
“Saí de casa muito jovem, viajei o mundo e acabei me distanciando um pouco do pai, vivendo sozinha. Agora, percebo que são incondicionais a dedicação, a proteção e o apoio que ele me dá. Até hoje, em noites frias, o pai levanta e me coloca o cobertor. Temos opiniões contrárias sobre muitas coisas, mas convivemos bem. Nunca gostei muito de receber beijos, mas meu pai adora. Então, queria mandar um beijo para ele no Dia dos Pais.”
De acordo com a fonoaudióloga Sandra Elisabete de Oliveira Cazelato, doutora em linguística pela Unicamp, “uma pessoa com afasia tem dificuldade para encontrar palavras mais específicas ou abstratas, mas é possível, sim, expressar sentimentos, percepções, sensações através de gestos, da fala, fazendo associações entre informações e ideias”.
Ainda segundo a especialista, para uma boa interação com pessoas afásicas é necessário ter disposição para ouvir, compreensão do tempo de fala do outro e saber esperar, quando necessário, a reformulação de ideias, de frases e de palavras.
“Os afásicos podem trocar palavras, sílabas ou a ordem das frases e precisamos estar atentos para que a interação continue, que flua a conversa, que o outro seja ouvido e compreendido”, explica.
Hamilton Haddad Junior, 46, professor aposentado do Instituto de Biologia da USP, teve muita dificuldade de se relacionar com a filha Ana Brito Haddad, 8, no primeiro ano após ter sido acometido por um AVC e ter ficado afásico. Eles chegaram a se afastar um pouco para que ele pudesse se reabilitar.
Ela tinha três anos e meio à época e a nova condição do pai era um desafio para os dois, tanto na questão da mobilidade como na comunicação. Eles tiveram de reconstruir a forma de interação e de trocas.
“Agora nós jogamos e brincamos juntos, ela já está adaptada. Ela me entende muito e me ajuda a falar, quando não consigo”, conta o pai, que é doutor em fisiologia humana.
Para a pequena Ana, que se alfabetizou ao mesmo tempo em que o pai reaprendia a lidar com a fala, atualmente, tudo é normal na relação entre eles. “Para entender bem o meu pai é só agir normal. É só chegar e conversar com ele”, diz a menina, que consegue, com naturalidade e atenta aos contextos, completar as falas e raciocínios do pai.
O perfil de pacientes com afasia tem mudado drasticamente na última década. Chama atenção a concentração do público mais jovem, abaixo dos 50 anos, buscando por reabilitação da fala.
O movimento segue o mesmo caminho do aumento das incidências dos acidentes vasculares cerebrais, segunda principal causa de morte no país, com cerca de 16 milhões de afetados ao ano.
Sergio Timerman, coordenador do Treinamento de Emergências Cardiovasculares da Sociedade Brasileira de Cardiologia, afirma que mudanças no estilo de vida ajudam a explicar a ampliação da ocorrência de AVC entre os mais jovens.
“Eles tem tido mais obesidade, mais diabetes e mais hipertensão. Têm bebido mais, fumado mais e feito menos exercícios. Juntando tudo isso com uma alimentação menos saudável, sedentarismo e fatores hereditários, estão dadas as condições para um AVC.”
A gerente de RH Mirella Pretto de Amorin, 33, foi acometida por um AVC aos 29 anos e ficou afásica. Quatro anos de reabilitação depois, porém, fala quase que naturalmente e também avalia que a experiência drástica por que passou a fez repensar a relação com o pai, Antonio Carlos de Amorin, 64, que guarda dificuldades de interação social.
“Eu praticamente não me relacionava com meu pai antes de tudo acontecer e, com a afasia, nossa interação ficou mais difícil ainda. No começo, ele atropelava muito a minha fala, mas quem passa por uma experiência dessa passa também por uma mudança na dinâmica familiar, revisa suas formas de entender a vida e os outros”, conta.
Fluente em inglês e com grande bagagem cultural, o que, segundo os profissionais de reabilitação, pode ampliar o potencial de reestruturação da comunicação afetada, Mirella avalia que passou a observar melhor as formas de o pai transmitir carinho a ela e que hoje reconhece “amor incondicional” na relação pai e filha.
“Depois do AVC, ou você repensa seu estilo de vida e suas emoções ou não vai sobreviver por muito tempo. Meu pai também mudou, sinto que ele se esforça bastante para estarmos mais próximos e nos entendermos. Temos mais empatia. Queria que ele relaxasse mais, curtisse mais as coisas da vida. Estamos no caminho.”