“Ser o que se pode é a felicidade (…) Não adianta sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar ao impossível. A felicidade é a aceitação do que se é e se poder ser.” (Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens)
2020 foi um ano traumático. Na acepção estrita do termo. Trauma é um evento cuja força ultrapassa nossa força de resistir. Um osso quebrado é um trauma na medida em que este não pôde resistir à força a ele infringida. No âmbito psicológico, um trauma refere-se àquilo que não temos aparato psíquico para apreender, quando nos falta repertório discursivo.
A pandemia de 2020 nos colocou frente a uma situação sem precedentes para nossas gerações, despedaçou nossa ilusão de controle. Nos deparamos com situações que não estavam no nosso discurso, que não sabíamos como agir, o que fazer, enfim, que desmontaram o sentido prévio que havíamos estabelecido para o mundo. Ficamos, literalmente, “sem palavras”. Não saber, não compreender, não entender a lógica implícita das coisas, as relações de causalidade, estar diante da falta de sentido é algo potencialmente angustiante e ansiogênico.
Nossa impotência e falta de controle foram escancaradas em 2020, não restou pedra sobre pedra. A realidade se impôs, alheia aos nossos desejos e aos nossos planos. Nesse contexto os discursos negacionistas surgem como uma defesa contra a impotência e a falta de sentido.
Como se o fato de eu não querer, ou não admitir, que o mundo seja de determinada maneira, operasse concretamente na lógica do mundo, fazendo com que o mundo se adequasse ao meu discurso se eu negar algo, aquilo deixa de existir.
Trata-se de um jeito simplista e ineficaz, obviamente de tentar reconstituir a nossa ilusão de controle. Como se o fato de insistir na cloroquina como tratamento para a Covid-19 e querer muito que esse tratamento funcionasse, fizesse-o funcionar. E, para que isso se sustente, ignora-se tudo da realidade que diga o contrário. O discurso passa a ter maior valor de realidade do que a própria realidade.
Mesmo com tudo isso, chegamos até 2021. Agora já não estamos mais desavisados, já temos um discurso que explica de onde o vírus veio, como ele funciona, dados estatísticos, epidemiológicos, enfim, uma infinidade de conhecimento produzido pela nossa experiência pessoal e, principalmente, pela ciência que nos retirou o sentimento de estarmos imersos num grande vazio de sentido.
Se antes termos como pandemia, lockdown, quarentena, isolamento social dentre muitos outros não eram sequer conhecidos pela grande maioria das pessoas, atualmente fazem parte do nosso vocabulário mais cotidiano e coloquial.
Então, podemos dizer que já sabemos onde estamos, resta saber o que viemos fazer neste lugar.
2021 será um ano de reestruturação, a pandemia ainda persiste e a previsão é que seja pior que em 2020 porém, temos repertório psíquico para entendermos e nos localizarmos diante da situação.
Agora é encarar a dura realidade: a vida não voltou ao normal, nem vai voltar. Não existe a possibilidade de retornar ao estágio anterior em que a Covid-19 não existia. Esse mundo sem Covid não existe mais.
É preciso incluir toda essa experiência, todo o conhecimento adquirido nas nossas vidas, e entender o que será possível neste ano.
A tarefa de 2021 não é tentar levar uma vida normal, mas levar uma vida possível diante do cenário de pandemia. A vacina é uma grande esperança, mas é apenas um dos passos necessários diante de uma problemática altamente complexa.
Precisamos ir reconstruindo os sentidos de nossas vidas a partir dessa realidade que nos é imposta, sabendo que nada é garantido, que o controle é apenas parcial e que, ainda assim, é possível fazer planos.
Nós nos adequamos à realidade e não o contrário. Quanto mais aceitarmos isso, mais leve fica a vida e menos ansiosos e deprimidos vamos ficar. Mais do que nunca, este é um ano para se aceitar o que se pode ser e fazer.
Por Kátila Kormann Morel
Psicóloga e psicanalista
05/01/2021