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Coluna Subtexto: O tempo linguístico

Outro ponto pacífico é que cada fase tem a sua beleza e a sua aspereza

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De todos os momentos em que a passagem do tempo parece rápida e imperceptível, talvez aquela com 100% de rapidez seja a parentalidade. Pais e mães de adolescentes ou filhos adultos são uníssonos ao dizer aos papais e mamães recentes, “Aproveita, porque passa rápido”. Amo a frase: “Para os pais os dias são longos e os anos são curtos”. É bem isso! São tantas as atividades relacionadas aos filhos que 30 horas por dia ainda seriam insuficientes. E de repente, as crianças estão entrando na faculdade ou começando a trabalhar.

Outro ponto pacífico é que cada fase tem a sua beleza e a sua aspereza. Quando bebês, as gripes, dores e choros são mais doídos, porque a criança ainda não verbaliza o que sente e isso é angustiante para os pais. Na adolescência, a luta contra os celulares e os perigos das baladas e, depois, na vida adulta, as ausências e a saudade.

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Como professor da área de linguagens, a fase que penso mais encantadora é a do início da aquisição da linguagem. Conhecemos o mundo pelo outro. Sabemos de sua existência, antes de saber da nossa. Vemos a mãe e o pai, nossa casa e parentes, passamos a reconhecê-los antes mesmos de saber que nós existimos. Nessa interação maravilhosa ouvimos o tempo todo o idioma que falam nossos pais e começamos a moldar nossa capacidade de fala. Primeiro vem as vogais ou soantes (A-E-I-O-U), que são os sons que, após serem produzidos, passam pelas pregas vocais e boca e saem sem serem interpelados por língua, dentes e lábios. Em seguida, balbuciamos as primeiras consonantes, que só existem com as soantes, as vogais. Começamos pelas bilabiais, aquelas em que juntamos os dois lábios, de cima e de baixo, para produzir o som: M, P e B. Ao verem os filhos produzirem os sons /Maa/ e /Paa/, mãe e pai correm felizes ao sentirem-se valorizados: Ele falou mamãe. Balbuciou papai. Na verdade, a inteligência da criança é tão grande que rapidamente ela percebe que quando produz esses sons, mãe e pai aparecem. Assim, ela passa a fazê-los sem restrições. É por esta razão que as palavras mãe e pai são bilabiais, ou seja, se escreve e pronuncia com M, B ou P, na maioria dos idiomas. Para a criança, o som vem antes da percepção de seu significado. O significado de mãe e pai para o som é dado pelo adulto e internalizado pela criança.

Mais adiante, ao conseguir compreender a estrutura do idioma, a criança começa a encantar a todos com os “equívocos linguísticos”. Eu sabo! Ora, se aprendemos a falar ouvindo, será que alguém falou Eu sabo para a criança? Possivelmente não. Como ser pensante e capaz de inferir rapidamente as regras do idioma que fala, o raciocínio é simples: Eu corro, Eu jogo, Eu entendo, Eu faço, logo, Eu sabo. Genial. A criança só está mostrando que ainda não aprendeu as exceções da língua, por isso, aplica a regra. Eu entendi, Eu parti, Eu corri, Eu decidi, Eu fazi! Toda primeira pessoa do pretérito perfeito termina em i, então, vou colocar i nesta aqui também, raciocina a criança.

Em minhas aulas de língua inglesa, como tantos colegas, vivo implorando aos meus alunos para que tentem, à sua maneira, memorizar os verbos irregulares. Tabelas para lá e para cá, algumas transformadas em aviõezinhos que atingem as cabeças dos colegas, outras perdidas no fundo das mochilas para a tristeza dos professores, os equívocos dos novos falantes são tão infantis quanto encantadores.

O passado simples em inglês é composto pela adição da desinência –ED para a grande maioria dos verbos. I play, eu jogo, I played, eu joguei. Contudo, como a língua é um organismo vivo, com o passar do tempo, seguindo o caminho da fala para a escrita, muitos termos são modificados e adquirem novas formas, deixando de seguir a regra, irregularizando-se, desta forma. O verbo TER, por exemplo, (to have), provavelmente, fazia o passado em –ED (haved). Porém, passaram-se tantas décadas de pronúncia rápida e natural que a forma verbal se alterou para HAD, estrutura atual.

Porém, retomando a discussão sobre as crianças, o mesmo processo de reflexão sobre a linguagem ocorre com os pequenos anglófonos. Assim, para dizer que colocou os pratos sobre a mesa, uma criança que está aprendendo a falar, no interior da Inglaterra, provavelmente dirá I putted the plates on the table, regularizando o verbo Put, cujo passado, hoje em dia, apresenta a forma irregular PUT.

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Uma obra maravilhosa que aborda a evolução do latim até chegar à língua portuguesa atual é Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português1, do professor Caetano W. Galindo. Tradutor de Ulysses, de James Joyce, para a língua portuguesa, Galindo passeia pela história da evolução do latim vulgar, popular que se modificou a partir de contato com outros idiomas e pela impiedade do tempo sobre ele. Na obra, o professor propõe a ideia de que hoje falamos uma das centenas de variações do latim, a brasileira. Uma delícia descobrir a razão de falarmos como falamos. Excelente leitura, indico.

Mas, voltando ao tempo, temática inicial desta crônica, este processo de descoberta da regra pela criança é tão encantador quanto rápido. Num piscar de olhos, os filhos já estão fazendo uso das variantes linguísticas e adaptando sua fala às situações e interlocutores. Aí, como tudo, resta aos pais, lembrar em momentos nostálgicos, os “errinhos” que os filhos cometiam. Fica a saudade, passa o tempo. Mesmo o linguístico.

  1. Galindo, Caetano W. Latim em pó: Um passeio pela formação do nosso português. São Paulo, Companhia das Letras, 2023.

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Glauco Keller
Glauco Keller
Glauco Keller é jornalista, professor da área de linguagens e história da arte. É mestrando em educação e apresenta semanalmente o Programa Subtexto pela Rádio UFSCar, no qual entrevista escritores e artistas. É autor do livro de crônicas Mata-burro.
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