Imagine que você e seus amigos resolvam pegar um cinema na sexta-feira à noite. Sugestões, críticas, alguém menciona um filme nacional e, ao final, vocês decidem assistir a uma comédia. Ingresso fácil pela internet, pipoca comprada, turma reunida, tudo parece perfeito. Menos o filme. Após mais de duas horas de exibição, vocês não deram uma única gargalhada. Nem uma risadinha de canto da boca. Decepção geral.
Se isso nunca aconteceu com você em uma comédia, é provável que a decepção tenha acontecido com um filme de terror, que não lhe gerou medo, ou numa aventura que se passa toda dentro de um apartamento em Manhattan.
Os gêneros dentro da literatura ou do cinema são características estéticas e temáticas que identificam uma obra e devem, pelo menos em tese, gerar determinadas sensações nos leitores ou espectadores. Quando assistimos a um suspense, queremos sentir tensão, em uma comédia, queremos rir e quando lemos um livro sobre uma investigação criminal, esperamos ser enganados pelo narrador. Se descobrimos quem é o assassino no começo do livro, terminamos a leitura decepcionados e não indicamos a obra para ninguém. Por essa razão, por mais que o autor de um livro ou diretor de um filme saiba disso e estabeleça em suas produções critérios para que essas sensações sejam geradas, o gênero só estará completo com a anuência do leitor ou do espectador quando, de fato, lerem o livro ou assistirem ao filme e sentirem as sensações que caracterizam o gênero. Caso assistamos a um filme de terror e não levemos um único susto ao longo da exibição, significa que o filme não funcionou enquanto gênero.
Para Aristóteles1, em sua Poética, obra que traz um conjunto de anotações do filósofo sobre arte e poesia, para que uma história seja de fato impactante na vida do leitor, esta deveria fazer com que o mesmo passasse por um processo de forte descarga emocional ao final da leitura, sensação esta que o filósofo grego chamou de catarse. Contudo, para que a catarse ocorra, segundo Aristóteles, o enredo deve trazer um protagonista que saia da plena felicidade, ao que o autor chamou de Dita, para chegar à infelicidade, Desdita. Finais felizes, portanto, estão fora de cogitação, pois não geram no espectador a sensação de transe, emoção e catarse e são, assim, esquecidos facilmente.
Assim acontece com Édipo-Rei, de Sófocles2 e com Romeo e Julieta, do dramaturgo inglês, William Shakespeare3, talvez as duas peças mais conhecidas no mundo ocidental. É bastante provável que esses textos não fossem conhecidos na modernidade e os nomes de seus criadores não aparecessem nesta crônica, caso Édipo não tivesse matado o próprio pai e se casado com sua mãe, justificando a previsão do Oráculo, e Romeo e Julieta tivessem vivido felizes para sempre.
Outro aspecto que nos conecta diretamente com o texto ou filme enquanto leitores ou espectadores é o conceito de verossimilhança. Todos nós sabemos que tanto a literatura quanto o cinema são artes que fazem uso da ficcionalidade, ou seja, aquilo que não está e não existe no mundo real, tal qual o conhecemos. Somente por isso, Bram Stocker, ainda no século XIX, pode dar vasão a sua criatividade ao criar o personagem Conde Drácula, J.K. Rowling pode imaginar as aventuras de Harry Potter e os quadrinistas Jerry Siegel e Joe Shuster puderam criar o Super-homem.
Contudo, mesmo dentro dessa realidade amplamente ficcional, há limites para uma irrealidade verdadeira chamada verossimilhança. Enquanto espectadores ou leitores, aceitamos as regras postas pela obra e só dentro dela, mas, se esse acordo tácito entre autor e leitor/espectador é quebrado, a magia se esvai e o descontentamento surge. Assim, não aceitamos ver o Conde Drácula, às três da tarde, tomando sol numa praia da Califórnia, descobrir que Harry Potter é, na verdade, Bruce Wayne e vive em Gotham City, nem tampouco ver o Super-homem morar em uma casa feita de kriptonita.
Tal pensamento é, ao mesmo tempo racional, por estabelecer certa lógica na ficção, mas pode gerar comentários curiosos que indiquem singulares funcionamentos cognitivos. Em 2023, quando a Disney lançou o live action “A pequena Sereia”, apresentando como protagonista a atriz Halle Bailey, milhares de internautas se manifestaram contrários, afinal, como dizia uma das postagens mais famosas, “Como assim? Todos sabem que não existe sereia negra!” Preconceito a parte, esse raciocínio só indica que para o leitor ou espectador, há sim uma verdade nas mentiras ficcionais, o que prova que a arte tem a obrigação de quebrar as regras, mesmo dentro da própria arte.
- Aristóteles foi um filósofo grego que vivem entre os anos de 383 e 381 antes da Era Comum.
- Sófocles foi um dramaturgo grego que vivem entre os anos 497 a 405 antes da Era Comum.
- William Shakespeare foi um poeta, dramaturgo e ator inglês que viveu entre os anos de 1564 e 1616 da Era Comum. É considerado o maior escritor da língua inglesa e por muitos o maior dramaturgo da história.
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