Eles são pais em tudo: nas noites mal dormidas, nos puxões de orelha, na vibração a cada conquista. E, embora não sejam os genitores, conquistaram o reconhecimento do vínculo de pai também no papel. A paternidade socioafetiva, como é chamada no meio jurídico, tem nomes mais singelos no interior dos lares brasileiros.
“É emoção”, resume o advogado Oton Nasser, de 55 anos, pai de Nicole, de 17, e Gustavo, de 12. Foi a jovem quem primeiro teve a iniciativa de oficializar o vínculo de filha com Nasser. No ano passado, ela levou o advogado ao cartório, de surpresa. A assinatura dos papéis que acrescentavam o nome do advogado na certidão de nascimento foi feita em meio às lágrimas.
O pai biológico de Nicole e Gustavo morreu 11 anos atrás. A perda, em um acidente de trânsito, marcou a família, e Nicole, no início, tinha dificuldade de aceitar um novo relacionamento da mãe. “Um dia, em uma viagem, ela falou: ‘tio Oton, por que você não namora a mamãe?’” Foi um sinal de que o coração começava a se abrir.
Com o mais jovem, Gustavo, o vínculo começou cedo. Desde bem pequeno, ele identificava em Nasser a figura paterna e colocava nas provas da escola o nome do padrasto. Não entendia, porém, por que o sobrenome de Nasser não aparecia em seus registros. Este ano, a surpresa foi inversa: o advogado levou Gustavo ao cartório sem que ele soubesse. Com o papel nas mãos, o menino celebrou: “É oficial”.
“A paternidade socioafetiva não é só no papel: ela sai do verdadeiro estado emocional e desemboca no papel. É da convivência para a certidão”, diz o advogado, que também tem outros filhos, biológicos. Nas certidões de nascimento de Nicole e Gustavo, agora, constam os nomes da mãe e dos dois pais. “Eles tiveram um pai biológico, que cuidou deles, que olha por eles, mas também tem um presente.”
No Brasil, já são 44.942 registros de paternidade socioafetiva desde 2017, quando se tornou possível o reconhecimento diretamente nos cartórios, segundo dados da Associação dos Notários e Registradores do Brasil (Anoreg). Hoje, para fazer o registro em cartório, é preciso que a criança tenha mais de 12 anos e que tanto o filho quanto o pai socioafetivo concordem com o reconhecimento.
Em casos de menores de 18 anos, também é pedido aval dos pais biológicos. Se não houver concordância do pai biológico ou se a criança for menor de 12 anos, o procedimento tem de ser feito pela via judicial. O registro da paternidade socioafetiva é irrevogável e, na certidão, não há distinção entre o pai biológico e o pai do coração.
Para fazer o reconhecimento, o cartório pode analisar documentos como registros da escola e até fotos em celebrações importantes. A modalidade cumpre uma função simbólica, de oficializar um laço de afeto que já existe, mas também pode ter papel prático, como garantir o direito à guarda e à herança – os mesmos de uma relação de paternidade biológica.
Dia a dia
Este ano, o Dia dos Pais na família da advogada Ana Luíza Rodrigues, de 25 anos, será comemorado com um tempero a mais: a jovem resolveu presentear Roberto Cravo, de 43, com a oficialização do vínculo entre pai e filha. O pai biológico de Ana Luíza se afastou após o divórcio e, quando a menina tinha 8 anos, conheceu Cravo, que passou a fazer parte da família.
O laço foi construído dia a dia. Em grandes e pequenos momentos, ele se fazia presente: viagens, formaturas, celebrações na escola. E até “nas apresentações minúsculas que eu fazia só para minha mãe em casa, ele estava lá aplaudindo, apoiando”, lembra Ana Luíza. A paciência foi a chave para a conquista. “Ele esperou meu tempo.”
Quando a jovem tinha 15 anos, o irmão nasceu e veio a dúvida sobre como ficaria o relacionamento com o padrasto, que agora tinha um filho biológico. “Pensei que teria alguma diferença no tratamento entre nós dois”, contou. Mas aconteceu o contrário. “Percebi ali, vendo que ele estava fazendo o papel dele sem deixar de fazer para mim, que era um cara com quem eu poderia contar. Comecei a reconhecer nele essa figura paterna.”
Cravo conta que o relacionamento exigiu algumas doses de empatia – no início, era preciso se colocar no lugar de uma menina ainda sem maturidade para entender a nova configuração familiar – e outras tantas doses de renúncia. “Queria curtir coisas de casal, mas priorizava os três saírem juntos. Ela nunca se sentiu preterida”, diz o pai, supervisor de manutenção de uma plataforma de petróleo.
Na vida adulta, o apoio continua, de outras formas: ele busca oferecer oportunidades para que a jovem se desenvolva e tenta transmitir sua experiência para evitar que os filhos passem pelas dificuldades que passou. “Ele se esforça para abrir caminhos”, conta Ana Luíza.
Devolução
Em uma via de mão dupla, também recebe muito em troca. “Aprendi a ouvir mais, a ser mais humilde”, diz ele. Ter o amor registrado em papel, afirma o pai, confirma que tudo valeu a pena. “É um reconhecimento da parte dela, de que atendi às expectativas”, comemora. “A consolidação dessa história toda, a cereja do bolo.”
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.