Contratos que podem chegar às centenas de milhões de reais recebem hoje garantias que são conferidas por um único servidor público: o responsável pela licitação ou pregão. Documentos como cartas-fiança não são supervisionados pela Controladoria-Geral da União (CGU) e, muitas vezes, nem mesmo pelo controle interno dos ministérios. Após reportagem do Estadão, que mostrou um mercado paralelo de empresas montadas para vender fianças, a CGU informou que editará uma recomendação sobre o assunto.
A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid esbarrou no mercado paralelo de garantias ao investigar a empresa FIB Bank, que atuou nas negociações da vacina indiana Covaxin. O Estadão revelou não se tratar de caso isolado ao identificar outras oito empresas que prestam garantias em contratos do poder público, mesmo sem autorização do Banco Central (BC) e da Superintendência de Seguros Privados (Susep) para atuar. A prática fere a lei brasileira e configura fraude à licitação.
Em resposta à reportagem, publicada na segunda-feira, 1º, a CGU disse que não tem dados sistematizados sobre o assunto e nem acompanha a forma como cada repartição pública lida com o tema, uma atribuição do controle interno dos ministérios. A CGU também admitiu não haver, atualmente, nenhuma orientação a ser cumprida pelos órgãos ao aceitar garantias de empresas. Foi aí que informou a decisão de editar uma recomendação sobre o assunto, como parte do Sistema de Integridade Pública do Executivo (Sipef), com um checklist mínimo a ser cumprido antes da aprovação de uma fiança bancária.
Segundo a CGU, o “roteiro” a ser seguido está descrito no Manual do Siafi (Sistema Integrado de Administração Financeira). Na realidade, porém, cada ministério ou autarquia adota um procedimento e nada é publicado em ferramentas como o Portal da Transparência ou o Siga Brasil, do Senado. Ao responder a um pedido formulado pelo Estadão por meio da Lei de Acesso à Informação (LAI), por exemplo, o Ministério da Agricultura observou que não inclui o CNPJ das empresas que prestam garantias a seus contratos no Siafi. Somente são inseridos o valor e o tipo da fiança, além da empresa fornecedora. A prática dificulta saber quem são as garantidoras.
Desde 2012, o Ministério da Agricultura aceitou pelo menos seis cartas-fianças de instituições não reguladas pelo Banco Central, entre elas o Infinite Bank S/A, o Analysisbank, a Maxximus Afiançadora e o FIB Bank. A informação consta da lista de garantias aceitas pelo ministério, obtida pela reportagem por meio da Lei de Acesso à Informação.
Cartas-fianças que se enquadram nesse modelo são chamadas no Direito de garantias fidejussórias. Segundo a advogada e mestre em Direito Administrativo Público pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Vera Chemim, a garantia fidejussória é aquela que está atrelada à pessoa ou empresa que a prestou, e não a um bem específico.
Neste tipo de contrato, a companhia “disponibiliza todo o seu patrimônio para garantir o cumprimento da obrigação do devedor”, disse Chemim ao Estadão. Ao contrário da garantia fidejussória, a chamada “garantia real” é aquela que está vinculada a um bem específico, como um imóvel.
Nos contratos firmados pelo poder público são aplicadas a nova Lei de Licitações, de 2021, e sua antecessora, a Lei 8.666, de 1993. As duas dizem que a licitação pode, ou não, incluir a exigência de uma garantia. Se houver esta exigência, porém, ela deve estar expressa no edital da licitação ou pregão. No caso das fianças bancárias, como as oferecidas pelas companhias citadas, elas só podem ser aceitas pelo poder público caso sejam emitidas por empresas autorizadas pelo Banco Central, como destacou Vera Chemim. “As apólices de seguro seguem na mesma direção: só serão emitidas por seguradoras inscritas na Superintendência de Seguros Privados (Susep)”, afirmou a advogada.
MP junto ao TCU fará representação
O procurador da República junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), Lucas Furtado, disse que formulará representação para que a Corte investigue o caso. O TCU não tem competência para punir empresas na esfera penal, mas pode aplicar multas e determinar a correção de possíveis irregularidades nos contratos.
O relatório final da CPI da Covid inclui um projeto de lei complementar sobre o assunto. A ideia é disciplinar o uso do nome “bank” e impedir que instituições não reconhecidas pelo Banco Central se apresentem como se fossem bancos.
Segundo o senador Renan Calheiros (MDB-AL), que foi relator da CPI, é preciso restringir a atuação das “empresas fantasmas de garantias”. “A CPI localizou e criminalizou a conduta (do FIB Bank) e apresentou um projeto para evitar essas distorções de empresas fantasmas como garantidoras de contratos com o poder público. Na próxima segunda-feira (08) vamos verificar se o projeto já foi distribuído”, disse Renan ao Estadão.