SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em meio a um intenso conflito que já dura mais de três anos e soma 2.500 mortos e ao menos 400 mil deslocados no norte de Moçambique, o trabalho de um brasileiro tem chamado a atenção.
Bispo de Pemba, capital da província de Cabo Delgado, dom Luiz Fernando Lisboa lidera os esforços da Igreja Católica para fornecer ajuda humanitária aos deslocados internos. São famílias que precisaram deixar para trás suas casas e até mesmo parentes devido aos ataques de insurgentes que se dizem ligados ao grupo radical Estado Islâmico.
O apoio, realizado junto com outras organizações internacionais, tem oferecido a essas populações abrigos improvisados, alimentos e medicamentos. “É muita gente deslocada com todo o tipo de necessidade”, afirma o bispo.
A ajuda mais importante, porém, tem sido dar voz às vítimas da guerra, famílias que perderam seus pertences, suas casas e, por muitas vezes, viram seus entes queridos mortos no conflito.
“Durante muito tempo, era proibido falar, os jornalistas eram perseguidos, alguns presos, temos um desaparecido desde o início de abril [de 2020]”, conta dom Luiz. “Então a igreja sempre falou, reportou para Moçambique e para fora do país a guerra, as pessoas que morriam, os deslocamentos, e isso provocou uma certa perseguição.”
O padre se refere a ataques como o do jornalista moçambicano Gustavo Mavie, que preside o Conselho Nacional de Ética Pública.
Em agosto de 2020, quando o trabalho do bispo de Pemba começava a ganhar notoriedade internacional, Mavie fez uma postagem no Facebook em que chama o religioso de “daltônico político”. O texto afirma ainda que dom Luiz culpa o governo moçambicano, não os insurgentes, pelo conflito.
“Esse bispo, no lugar de apoiar e ajudar o governo pensar melhor em como resolver os problemas, está a bater na entidade errada”, afirmou o jornalista à Deutsche Welle África.
Dom Luiz diz que a perseguição é política. “São pessoas que têm interesse em ficar bem na foto diante das autoridades, então atacam aqueles que falam.”
Durante boa parte do conflito, que começou em outubro de 2017, o governo preferiu manter o silêncio, por isso a perseguição a jornalistas e pessoas que divulgam o que se passa no norte do país, como o bispo brasileiro.
Há também denúncias de violações de direitos humanos por parte das autoridades moçambicanas, segundo David Matsinhe, pesquisador da Anistia Internacional para Moçambique e Angola.
“Há pessoas suspeitas de ajudar os insurgentes que desapareceram, foram torturadas e mortas”, relata. “O governo basicamente isolou as zonas de conflito. A imprensa não consegue acessar essa área.”
Matsinhe diz ainda que há denúncias de valas comuns e de fuzilamentos coletivos. Sem acesso a essas áreas, porém, é impossível confirmar a informação.
Essa região de conflito começa em Pemba e segue pelo litoral norte de Moçambique, até o distrito de Palma, na fronteira com a Tanzânia. Segundo Matsinhe, os insurgentes são jovens, em sua maioria do sexo masculino, nascidos na província de Cabo Delgado que tem maioria muçulmana em um país de predominância católica.
O grupo ao qual esses rebeldes estão ligados se denomina Ahlu Sunnah Wa-Jama e, em 2019, declarou ser aliado do Estado Islâmico. O bispo brasileiro, no entanto, afirma que isso é “uma capa religiosa para uma guerra que não é religiosa, uma guerra que tem como principal motivo a economia”.
“Não há conflito entre as religiões em Cabo Delgado, nem em Moçambique. Líderes religiosos convivem muito bem, fazemos trabalhos conjuntos”, afirma o católico.
O bispo ressalta, porém, que os soldados também são vítimas. “Eles vão [para a região] sem querer ir, são muito sacrificados. Muitos perderam a vida nessa guerra.” Segundo o relatório do Projeto de Dados de Localização e Eventos de Conflitos Armados (Acled, na sigla em inglês) de 9 de fevereiro, são 2.578 vítimas, das quais 1.305 são civis.
Dom Luiz trabalha justamente com os familiares dessas pessoas. “Há todo o tipo de relato que se possa imaginar. Pais que perderam seus filhos, meninas raptadas pelos terroristas, pessoas que viram membros da família serem degolados, esquartejados. As mortes são muito violentas.”
Há também a perda material, como casas que foram queimadas, e o trauma de passar, por vezes, até dez dias escondido nas matas ou ter abandonado idosos nas aldeias porque não conseguiriam fugir.
“É essa dor do povo que a igreja tem tentado acompanhar, ouvir, ser solidário e ajudar as pessoas a se levantar.”
O Alto Comissariado da ONU para Refugiados (Acnur) afirma que 424 mil pessoas que precisaram deixar as áreas de conflito, enquanto o presidente de Moçambique, Filipe Nyusi, fala em 570 mil deslocados.
Segundo o bispo brasileiro, a capital da província, Pemba, tem cerca de 150 mil desses deslocados. Matsinhe diz que a situação criou outro problema. Como muitas famílias receberam essas pessoas em suas casas, há às vezes 60 pessoas vivendo sob o mesmo teto, em espaços muito pequenos.
Soma-se a isso um problema sanitário, com pouquíssimo acesso à água, dificultando a higiene. O distanciamento social necessário para evitar a propagação do coronavírus, então, passa a ser inexistente. “Nos últimos oito meses, o conflito se intensificou. Os insurgentes decidiram que havia uma oportunidade de escalar os ataques devido à Covid-19”, afirma Matsinhe.
Segundo os dados oficiais, o vírus não atingiu em cheio o país. Com uma população de 29,9 milhões de habitantes, Moçambique soma 54,2 mil casos e 583 mortes, mas há o risco de subnotificação.
No norte do país, o caso é mais grave, já que a Covid-19 e o conflito se juntam a um histórico de desnutrição, analfabetismo e outros índices sociais precários. Mesmo com todos os riscos, dom Luiz diz que a população tem dado exemplo de solidariedade.
“Uma família não deslocada recebe duas, três de deslocados”, afirma. Por isso, ele toma a homenagem que recebeu no ano passado como um reconhecimento ao povo de Cabo Delgado. “Tenho aprendido a amar e a gostar, e tem sido muito solidário.”
A região do conflito é rica em recursos naturais, em especial reservas de gás e petróleo que têm atraído multinacionais. A petrolífera francesa Total, por exemplo, lidera um megaprojeto para extração de gás no valor de US$ 20 bilhões (R$ 107,4 bilhões). É o maior investimento privado atualmente em execução na África.
Matsinhe explica que os insurgentes são fruto de um longo período de exclusão política, econômica e social. Após séculos sob controle português, Moçambique conquistou sua independência em 1975. Nesses mais de 45 anos, porém, a região de Cabo Delgado foi ignorada pelo governo central, afirma o pesquisador da Anistia Internacional.
“A presença do governo é marcada por suas instituições, como escolas, hospitais, estradas, redes de água e esgoto, e tudo isso está em falta porque o governo está em falta. Toda a infraestrutura é da era colonial.”
Desta forma, a população local tinha como base de sua sobrevivência os recursos naturais. Para Matisinhe, quando, quatro décadas depois da independência, o governo central descobriu a existência das reservas e começou a explorá-las sem oferecer desenvolvimento econômico e social para os moradores da região, o conflito se formou.
O pesquisador da Anistia Internacional explica que as multinacionais que possuem projetos em Cabo Delgado não empregam a população da região, mas moçambicanos de outras províncias ou pessoas de fora do país.
O governo também acabou alimentando o discurso do conflito religioso, diz o pesquisador. “Eles gostam de dizer que islâmicos estrangeiros vieram para radicalizar as pessoas”, afirma. “Mas na verdade esses estrangeiros que possam ter vindo para radicalizar esses jovens só vieram para se beneficiar do trabalho de radicalização que o governo fez durante décadas.”
A atuação do governo de Moçambique na região tem sido polêmica desde o início. Além das denúncias de violação de direitos humanos e de perseguições, as autoridades foram acusadas de recusar ajuda internacional.
Matsinhe diz ainda que o bispo de Pemba é o maior responsável por ter atraído a atenção internacional para o conflito por sua atuação, o brasileiro foi reconhecido por três grandes jornais do país como personalidade do ano de 2020.
Dom Luiz inclusive conseguiu chamar a atenção do papa Francisco, que passou a citá-lo em suas bênçãos, como as de Páscoa e do Natal. A igreja doou ainda 100 mil euros (R$ 651,4 mil) no fim do ano.
O bispo agora tem data marcada para voltar ao Brasil de forma definitiva. Depois de atuar no continente afticano por quase oito anos, dom Luiz deve assumir a diocese de Cachoeiro do Itapemirim, no sul do Espírito Santo, ainda no fim deste mês, de acordo com um comunicado divulgado na semana passada pela Conferência Episcopal de Moçambique.
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Bispo brasileiro ajuda a chamar a atenção internacional para conflito em Moçambique
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- Por Mídias Digitais
- 20 de fevereiro de 2021
- 4 anos ago
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