BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Mais engajados em movimentos sociais, mais pobres, mais negros, mais dependentes de programas de permanência estudantil e mais envolvidos em programas de assistência psicológica. Este é o perfil da população transexual estudante de universidades federais no Brasil, segundo estudo conduzido pelo Gemaa (Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa) da UERJ.
A pesquisa, produzida a partir de dados de levantamento feito pela Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior) em 2018 com estudantes de graduação, mostra que só 0,3% dos alunos de instituições federais se identifica como transgênero.
Segundo Poema Portela, pesquisadora do Gemaa e doutoranda em sociologia da universidade, não há dados sobre o percentual de transexuais na população brasileira. Ela diz, no entanto, que o levantamento traz a hipótese de uma subrepresentação desse grupo no ensino superior.
“O que a gente pode inferir, considerando um quadro amplo da vulnerabilidade de pessoas trans, é que é um perfil de pessoas que sofre de diversas vulnerabilidades, que muitas vezes acaba evadindo o ensino básico, então entrar na universidade é um passo muito difícil”, afirma ela.
Nesse pequeno grupo, a pesquisa aponta um perfil que difere dos colegas cisgêneros (pessoas que se identificam com o gênero que lhes foi atribuído no nascimento): 58% são negros, contra 51% do total da amostra; 76% têm renda de até 1,5 salário mínimo per capita, contra 69%; e 33% dependem mais de programas de permanência estudantil, contra 28%.
Além disso, pessoas trans são duas vezes mais militantes em organizações sociais. Entre esse grupo, 45% responderam ser parte de movimentos, contra 28% dos colegas cis.
Essa prevalência se explica em parte, diz a escritora e transativista Helena Vieira, pela necessidade de criação de uma rede de apoio, uma vez dentro do ambiente universitário, que permita a essas pessoas concluírem os cursos. “Uma das principais causas de evasão é a dificuldade de permanência, seja por violências sofridas ou por dificuldade de se manter”, diz.
Ao mesmo tempo, ela defende que a existência de movimentos como os que lutam pelos direitos dos transexuais ajuda a inserir outras pessoas. “As primeiras pessoas trans que entram na universidade ganham notoriedade, mostram que é possível construir uma trajetória outra. Como os direitos são inventados a partir de uma necessidade, é preciso que essas formas de vida se organizem e disputem esses espaços.”
Uma das questões que dificulta o acesso aos estudos é a baixa empregabilidade, diz Vieira. Pesquisa feita pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) mostra que o emprego formal ainda é exceção para a população trans, em que 90% das pessoas têm como principal fonte de renda a prostituição. E, entre as mulheres trans negras, são 85% que ganham até 1,5 salário per capita, o maior percentual entre todos os grupos analisados pelo Gemaa.
“É muito importante não só o auxílio socioeconômico, mas a abertura de vagas de trabalho para pessoas trans nas próprias universidades, porque a ausência de emprego faz com que a pessoa tenha que se prostituir ou assumir outro trabalho e não termine o estudo”, afirma a escritora.
As questões de ordem financeira, porém, não são as únicas que devem ser tratadas quando se fala no ingresso e permanência de transexuais na universidade. Sara York, mestra em educação pela UERJ e responsável pelo setor de educação da Antra, diz que a própria formação de transexuais e a presença dessas pessoas em outros espaços será importante para ampliar o número que chega à graduação.
“O sujeito trans é sempre apresentado de duas formas na mídia: como alguém de quem rir ou para fazer chorar. É destituído de possibilidade. Então a última coisa que você vai querer ser, que você vai querer que seu filho seja, é trans”, afirma.
“Eu sou uma travesti da educação. Então, na minha sala de aula, como alguém que não é para rir e nem dá pena, eu torno mais complexas as relações. Amplio como alunos e alunas podem ver a si mesmos dentro do campo do gênero e da sexualidade, porque eles veem que sou uma pessoa normal.”
Outro ponto unânime entre os especialistas e ativistas ouvidos é a necessidade de políticas voltadas para as necessidades específicas dessa população, que visem coibir o bullying, dar apoio para suprir déficits educacionais do ensino básico dentro da universidade e ampliar o acesso a ajuda psicológica especializada.
Atualmente estudante de psicologia, Miguel Marques chegou a deixar os estudos por dois anos depois de sofrer bullying de colegas em uma universidade particular de Salvador, onde cursava estética e cosmética. Na época, diz, os colegas descobriram sua identidade por causa da lista de chamada, onde a instituição insistia em colocar o nome que consta em sua certidão de nascimento.
“Eu tinha passabilidade [quando uma pessoa trans é vista socialmente, por aparência, como uma pessoa cis], mas a questão do nome denunciava. Começaram a fuçar minhas redes sociais, dizer que eu era mulher ou que era hermafrodita. Uma amiga que sabia me ligou dizendo para eu não ir pra faculdade um dia porque estavam fazendo chacota na sala”, conta.
Ele conta que sofreu com transtornos de ansiedade e ataques de pânico por causa da experiência na primeira universidade. “Esses ataques de pânico não foram derivados da minha identidade, mas da sociedade que não soube lidar com ela”, afirma.
A pesquisa do Gemaa mostrou que entre estudantes transexuais das instituições federais, o índice daqueles que buscam assistência psicológica é o dobro do que entre os discentes cis.
Apesar das dificuldades apresentadas, York acredita que há um avanço nos últimos anos. Levantamento da Folha de 2019 mostrou que ao menos 19 instituições possuem algo tipo de programa de ação afirmativa para esse grupo.
E a educadora acaba de ser aprovada em primeiro lugar no doutorado. “Há 5 anos eu não acredito que eu tivesse passado, porque o meu projeto, sobre políticas públicas para pessoas trans, talvez não fosse foco de interesse desta mesma sociedade. Evoluímos muito. Talvez esse seja o ponto disso mesmo, trazer esperança.”
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Universitários trans são mais negros, mais pobres e mais engajados, mostra pesquisa
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- Por Mídias Digitais
- 17 de fevereiro de 2021
- 4 anos ago
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